hífen

A minha professora da primária foi, a par com os velhos edifícios em pedra, dos últimos resquícios deixados pela ditadura. Era por assim dizer um peido de salazar. Vinha da província do norte e parecia ter mais cem anos do que realmente tinha, um dinossauro católico clonado pelo regime. Quando vejo estes sapatos da moda que imitam os antigos, lembro-me sempre dela, e não é uma memória muito agradável. Cada vez que a régua viajava no ar com destino à minha mão, era para os malditos sapatos que eu olhava antes de fechar os olhos. A porca segurava-me os dedos pelas pontas e deixava-me a mão a latejar. Acreditem, a maioria dos castigos corporais que recebi foi devido à minha complexa relação com as palavras. E de nada adiantou todas aquelas reguadas, continuei a trocar letras de sítio, a travar lutas com ligações enclíticas, mesoclíticas ou proclíticas, acentos, pontuação. A última vez que estive com a senhora, quis dizer-lhe que tudo o que ela conseguiu foi que eu temesse as palavras como se elas fossem dolorosos dardos afiados, mas mesmo agora que é uma velhinha com aspecto adorável, continuo a ter medo dela. Desconfio que até a morte anda à procura de coragem para a levar. 

all my friends are dead

Comentários

  1. :))

    Num almoço com os meus coleguinhas da primária fizemos, todos, questão de dizer à nossa querida professora as barbaridades que ela nos tinha feito. E a resposta dela foi " outros tempos, agora era impossível "
    Mas soube imensamente bem o dizer :))

    Beijoquinhas

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    1. a minha certamente nã se arrepende de nada, ela nã conhecia outra forma :)
      beijos menina

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  2. da professora da primeira classe, lembro-me que gostava de apanhar sol e ler livros, às sextas à tarde, enquanto nós limpávamos a escola...

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    1. como a compreendo, os trabalhos domésticos são uma perda de tempo :)

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  3. Manel, eu nunca apanhei na escola, mas vi acontecer a colegas cenas deploráveis.
    A minha mãe era professora do ensino primário e sempre disse que se algum colega batesse nas filhas levava um processo disciplinar.
    Odeio pancada, castigos físicos, violência deste tipo, em qualquer idade e por que motivo seja. Cobardia pura.

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    1. sorte a tua :)
      mas a criatura nã era só coisas más, às vezes tinha rasgos de humanidade...

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  4. Já eu, guardo as melhores recordações da minha querida Professora do ensino primário.
    Neste aspecto, fui uma felizarda...

    Bom Domingo, Manel. :)

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    1. até nas professoras é preciso ter sorte :)
      bom domingo Maria

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  5. Não de professora, mas de professor -- recordo que era mestre na arte de atirar a régua ao alunos com pensamentos voadores (talvez para apanhar os pensamentos em pleno ar).

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    1. a minha tinha uma vara imensa e com ela "pescava" todo o tipo de pensamentos voadores... outros tempos :)

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  6. A minha era assustadora. Tinha um olhar de ave de rapina que nos trespassava o corpo e revolvia os pensamentos, sempre à procura de um deslize. Era mestre no manejo da régua e do ponteiro. Tinha um semblante muito sério, só a via sorria quando nos aplicava reguadas, mostrando uns dentes como uma hiena. Não guardo boas recordações dessa época. Recordo-me dela de carrapito, com verrugas e bigode. Coitada, provavelmente não seria assim tão feia, mas, para mim, era uma espécie de monstro. Manel, não sei que problema é que tu tens com as palavras. As que que aqui leio são sempre bonitas, límpidas e certeiras. Gosto muito de ler o que escreves.

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    1. obrigado Miss Smile, mas durante anos temi dar uso às palavras até encontrar o antídoto: uma professora de português genial :) Vendo bem, tudo o que ela teve de mau e de bom, e se calhar o mesmo se aplica à sua feia professora, marcaram-nos, mas também nos terão feito mais justos... nã? :)

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  7. Aí sr Manel, fui muito feliz na escola primária. :)
    Eu adorava fazer ditados, tinha muito jeito para inventar histórias.
    Nos recreios, era eu quem comandava as tropas "as miudas" todas dançavam e cantavam! :)
    Tenho ideia que a minha professora era um doce. Também tive alguns castigos mas, nada de traumatizante.
    Obrigada pela lembrança da infância.
    Em relação a imagem,
    Presentemente não me tenho esforçado minimamente para conhecer pessoas mas ... um passo de cada vez! :)
    Beijinhos e continuação de bom domingo, sr Manel.

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    1. senhora Dona Flor, nem me fale em ditado, até ficava doente quando a senhora professora dizia essa palavra odiosa, ficava num estado tal que nem a comida me passava pelo esófago :)
      fico feliz por ter boas lembranças, nem todas as que tenho são más. Boa semana, beijos

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  8. A minha era austera, rigorosa, mal disposta e possuidora de uma régua de madeira pesada que usava a torto e a direito. Agora é só uma velhinha inofensiva, mas é impossível perdoar-se o primeiro contacto com a crueldade.

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    1. Estou a pensar nas consequências desses gestos, certamente nã foi igual para todos, a mim marcou-me talvez porque os meus pais nunca me aplicaram castigos físicos, foi um conceito novo :) pode ser que ela morra no natal...

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    2. A mim também. Não sabia nada sobre adultos com réguas e lembro-me do espanto da primeira vez (foi também a única, porque ao contrário da maior parte dos outros eu tinha quem me defendesse). Não me entortou as letras, mas traumatizou-me a matemática.

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  9. Estou um bocadinho pior, tenho poucas recordações da primária e das professoras nenhuma. Estão a ver a importância que a escola teve na minha vida, ninguém diria depois desse primeiros anos que depois nunca mais sairia da escola, estudar e depois ensinar uma vida inteira. Mas tenho memórias do meu quintal, da enorme mangueira, das bolas de sabão feitas em cana de mamoeiro, dos enormes formigueiros...e de aprender a ler pelos cadernos da minha irmã mais velha.
    ~CC~

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    1. Ué, que maravilhosas recordações :-))

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    2. no caso de serem várias professoras, acredito que seja difícil lembrar todas, mas levei com aquela 4 anos seguidos, nem tudo foi mau, mas podia ter sido melhor :) com tanto nesse quintal, nã me admira que a escola ficasse em segundo plano...

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  10. fizeste-me ir ao diccionário e vir de lá na mesma...
    a tua professora que vá pentear macacos. diz-lhe que eu mandei dizer...

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  11. Lembro-me bem daquela régua envernizada de madeira maciça e um pouco curva que era o verdadeiro poder da professora do primeiro e segundo ano. Lembro-me bem como ela me deixava as mãos por causa dos números e da tabuada. Depois veio a revolução de Abril :)
    Ainda hoje odeio números :))

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    1. veio abril mas nã me apanhou na maré, gostava de entender, mas esse país é sempre a dar passos atrás...

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  12. Cada vez mais me capacito que tive um paizão muito à frente. Ai de quem tocasse num fio de cabelo de um filho seu e, por saber disso, e me ter sido ensinado que nunca deveria permitir que alguém me maltratasse, fosse de que forma fosse, é que, no dia em que a professora Regina quis usar a palmatória em mim, eu me levantei, virei-lhe as costas, sai porta fora e só voltei pela mão do paizão, que quis saber o que passava. Para azar dela estava uma colega joelhada na caixinha do milho, o pai não queria acreditar no que via, e acreditem que levantou a senhora do chão pela gola engomadinha da alva bata. Aquele foi o ultimo dia das caixinhas do milho e das caricas e também da palmatória. Não sei o que o pai lhe disse em voz baixa, mas que resultou, resultou, para toda a turma. A sério pessoal ficou mais doce que um docinho de Vouzela de onde era originária, e quando foi embora até choramos, não lembro se foi de alegria eheheheh

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  13. Não tive essa experiência traumática das reguadas, nem em mim, nem nos meus colegas. Dos poucos meses em que frequentei a primária por cá, não recordo nada disso. A professora era jovem e não usava dessa malvadez. Depois emigrei e o pior que me aconteceu foi a professora rasgar uma ou outra página do caderno, sinal de que a coisa não me estava a sair bem...

    [quanto às palavras, as que se escrevem neste blogue parecem-me fluir e ajeitar-se muito bem... :)]

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    1. tiveste sorte :) rasgar páginas, isso até era divertido!
      [um destes dias ganho coragem e mostro à senhora professora as coisas que aqui escrevo... e pode ser que ela tenha um ataque cardíaco :)]

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