lamegueiro

Os cavalos apareceram do outro lado da estrada, onde o solo mais granítico e as pastagens sucessivas, impediam o crescimento da mata. Os mais pequenos, potros com alguns meses, brincavam despreocupados, enquanto os adultos pastavam demoradamente por entre as rochas. As duas jovens humanas embrenhadas na mata do outro lado da estrada, observavam-nos em silêncio e os cavalos observavam-nas a elas. Depois, em conjuntos de dois ou três, atravessaram para a mata, por um trilho uns metros mais abaixo de onde as jovens assistiam, desaparecendo rapidamente na floresta densa. Só os cascos ecoavam no silêncio e de vez em quando um chamamento, ou um resfolgar distante, avisava os humanos de que não estavam sós. O homem que dormitava no chão fofo de matéria orgânica, na sombra pontilhada de vários ulmeiros jovens, acordou para ver os últimos cavalos a dissolverem-se no verde.

-Já passaram vários, ou várias, pareciam todas fêmeas prenhes com crias. Disse uma das jovens. Podíamos ter tirado umas fotos.

-Sim, podíamos, mas estávamos tão estupefactas que nem nos lembramos. E riem as duas.

-Foi mágico, não achaste?

O homem espreguiça-se, como se tivesse dormido pela eternidade naquela mata abrigado do calor e das horas. Se não fosse o testemunho das jovens, acharia que tudo tinha sido um sonho. O vento muda de direção e desce das copas, sacudindo o livro que estava por ler, as cartas da que joga sozinha, as coroas de folhas da outra que faz agora um adorno para o braço. Procura os óculos, mas depois esquece-se outra vez deles e fica a observar uma aranha que em nada se parece com as que normalmente lhe aparecem em casa. Apoia-se nas pedras cobertas de musgo para a seguir. Serviram em tempos para delimitar um terreno, colocadas ao alto com a força de vários homens e animais. São mais antigas que ele, embora ele tenha vivido muito, mas pouco se recorda do tempo em que nasceu. Às vezes sonha com esse tempo. Os uivos de violência, os incêndios que se prolongavam por meses, um céu negro impenetrável, sem vida. Começaram a viver fechados em casa quando era pequeno, não tinha entrado para a escola primária. No início prisioneiros de um vírus, depois prisioneiros do medo, do fumo, das cidades pilhadas, uma civilização destruída. O que lhe valeu foram os livros que enchiam todas as estantes da casa e os pais, sem os quais talvez nunca tivesse aprendido a ler e a escrever, a sobreviver.

-Essas pedras colocadas assim em linha, têm algum propósito? Pergunta a jovem que tem várias coroas feitas de caruma e folhas coloridas na cabeça.

-Serviam para separar dois terrenos.

-Como assim, separar?

-São antigas, do tempo em que as pessoas possuíam terras, casas, automóveis, até animais. As pedras separavam um pedaço de mata ou terreno, ou lá o que isto era. Para cá pertencia a uma pessoa e do outro lado pertencia a uma outra pessoa.

-Ah! Sim, já me lembro de termos falado disso. Mas as pedras não eram mais altas?

-Não, estás a confundir com uma muralha. Estas era simplesmente uma marcação, qualquer pessoa as atravessava, mas eram grandes para não as moverem facilmente e assim assegurar que não roubavam terreno.

-Porquê que queriam roubar? Eram ladrões?

O homem suspira profundamente. É difícil de explicar o conceito de roubo a quem só conhece a palavra da literatura romântica ou dos velhos policiais em que muitas vezes o ladrão é o bom da fita.

-Não eram ladrões. Algumas pessoas eram pouco honestas. Se tivessem oportunidade de ficar com algo que não era seu, apropriavam-se.

-Mas para quê? Pergunta a jovem das cartas. Para quê “apopiar” uma mata?

-Apropriar!… vem da palavra próprio… tornar seu… sua propriedade… diz o homem, enquanto limpa as lentes manchadas dos óculos. As duas jovens riem da palavra quando ela se torna mais perceptível mas igualmente vazia de significado. Esta sociedade desconhece o conceito de propriedade, de ter ou possuir algo. Não há dinheiro, nem bens. É claro que há objectos de uso pessoal que não podem ser partilhados, principalmente todos aqueles que podem disseminar partículas víricas, mas todos têm direito a eles e são usados de forma responsável. Os recursos continuam a ser escassos, mas depois da grande pandemia, depois da barbárie, deixou de fazer sentido a existência de fronteiras, caíram todos os governos: ditaduras, democracias, monarquias, oligarquias, federações… O ser humano tornou-se consciente de si, talvez impulsionado pelo vírus, pela sua singularidade extraordinária, fez a humanidade evoluir. No início não foi fácil, mas depois aplicaram em diferentes áreas, técnicas antigas que tinham caído em desuso, desde a agricultura até à educação. Tudo com um objectivo em comum, em prol da igualdade, do amor ao próximo, da preservação do planeta e em consequência, da preservação da espécie. O “próprio” deixou de fazer sentido quando aplicado a propriedade, porque ninguém possuí, sendo usado apenas para referir o contrário de impróprio ou dizer: esta ferramenta é própria para este uso!

-A mata dava madeira, frutos, cortiça, pasto para os animais… era uma fonte de rendimento, de obtenção de bens, e um terreno podia ser vendido numa situação de necessidade, ou passar para os herdeiros, também podia ser oferecido a uma noiva, por exemplo.

-O que é um herdeiro? Pergunta a jovem das cartas aos mesmo tempo que a das coroas de folhas quer saber porque ofereciam terra a uma mulher que se casava. O homem volta a suspirar. Sente-se muito velho, mais do que é na verdade. Medita sobre o que acabou de dizer, talvez se tivesse usado outras palavras, ou menos palavras, as dúvidas não se teriam propagado tão intensamente nas suas pupilas atentas.

-Já falamos dos herdeiros. Os bens materiais dos pais passavam para os filhos. Os filhos “herdavam” daí eles serem herdeiros. E também já falamos do “dote” que era a transferência de propriedades dos pais, ou dinheiro, quando a filha casava. O contradote era o preço da noiva e era um pagamento feito pelo noivo ou pela família do noivo para os pais da noiva.  Lembram-se dos camelos?

As jovens acenam que sim, lembram-se da história em que eram oferecidas 100 cabras e 200 camelos em troca de uma princesa e ficam sérias, percebem que a paciência do mestre está em vias de se esgotar e quando isso acontece, ele leva alguns dias até a reaver na totalidade, num isolamento silencioso e muito penoso para todos. Há mais de mil perguntas nas suas cabeças, mas por agora vão ficar em silêncio, desfrutando do vento e estudando as árvores.

O homem culpabiliza-se, gostaria de ser mais paciente, ter mais respostas. A sua nova ocupação de tutor foi-lhe atribuída pelos sábios, mas ele não se sente à altura para uma tarefa de tanta responsabilidade. E se estas duas já lhe davam água pela barba, nem se fala de quando estavam todos os outros, sete no total. Preferia mil vezes continuar nas plantações, gostava do trabalho manual, da solidão, mas o conselho decidira que era tempo de mudar.

-É um desperdício de conhecimento e já não vais para jovem. Dissera o terceiro ancião. Não se sentia assim tão velho para deixar de trabalhar, mas sabia que o ancião tinha razão. Tinha de dar lugar aos mais novos. 

O resto do grupo de jovens apareceu do mesmo sítio de onde tinham chegado os cavalos. Um pouco mais barulhentos, mas muito parecidos com os potros nas suas brincadeiras, cabelos enfeitados com líquenes e flores silvestres. Vinham do rio, as peles ligeiramente queimadas do sol, divertidos pelo encontro com pequenos anfíbios, libelinhas e bichos alfaiates. 


 

 

Comentários

  1. O título deste teu post remeteu-se para esta cidade "Lamego" onde também há árvores de grande porte e algumas com alguns séculos em cima.
    Os jovens " do hoje" não querem nem sabem trabalhar, por isso, isto de tudo ficar melhor é utopia! O ser humano não aprende com os erros do passado, e fico-me por aqui porque dá-me cólera[risos]
    Centro-me na bela imagem que colocaste, um porto de abrigo! Saibamos proteger o que há de mais belo e simples.
    Bom início de noite, Manel.

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    1. ehehehehe, só tentei escrever algo mais positivo, para me dar também alguma esperança :)
      boa noite, Perséfone

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  2. Isso era o futuro ou a Rússia no princípio do século XX?

    Vieste cá acima comer uma salsinha?

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    1. "era o futuro" é das minhas frases favoritas :)

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    2. quando damos, havia de ser sempre de graça :)

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    3. Sim, faltou-me uma vírgula. Agora, pareces realmente um velho dos que lêem e comentam os jornais só para apontar as gralhas... Diz-me, está a bater uma crise de meia idade qualquer, é isso? É por estares mais velho, de facto? Não penses mais nisso para todos os efeitos este ano não conta.

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    4. pra lá de meia… o verão deprime-me!

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  3. Nesse futuro, que descreves com tanta clarividência e de forma tão bela, eu estarei lá no alto.
    Serei a luz, por entre essa árvore frondosa, a iluminar o teu caminho...

    Beijinhos, comovidos. :)

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    1. oh, Janita, também eu serei luz por essa altura ou então muito senil :)
      beijocas

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  4. Essa imagem, é engraçada, olhei-a e quase vi um corpo de homem braços estirados ao céu.
    O texto, é o sonho de muitos, alguns até o cantam - https://youtu.be/L6svOHFSAH8

    Beijinho, afilhado mailindo

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    1. eheheheh, quase que se chamou "sonhador"... mas nã será mais do que isso, um sonho!
      beijos, madrinha

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