juízo

nos últimos dias a infelicidade tomou conta de mim e deixou que repousasse a cabeça no seu colo, enquanto entoava melancólicas composições de embalar. o seu canto era enternecedor mas suplantado pelos gritos da vizinha e pelo chiar arrastado das molas do colchão que repercutiam de cima para baixo. 

a mulher que guarda as chaves continua a usufruir da minha atenção e dedicação, como se fosse um escravo e não um amante. às vezes quase me atrevo a chamar-lhe paulina e a jurar que me lanço à morte do schlangenberg só para lhe provar o meu amor. mas depois fecho os olhos, bebo mais um copo e fico a pensar se realmente é amor.
notei recentemente que quando outros interesses lhe ocupam os dias e fica ausente, é alívio que sinto e experimento uma estranha liberdade, como se a porta da gaiola ficasse aberta por esquecimento. mas depois ela volta, ouço a chave rodar na fechadura porque tem os pés frios ou lhe morrem as plantas e tudo volta ao início. podia travar a fechadura com a minha chave por dentro, mas nunca o faço, e mesmo quando não sei por onde anda, pois não me deve explicações, deixo a chave no limite, para que ela possa entrar sempre que precisa de mim. 

a outra, a que canta no coro, vejo-a regularmente mas é com desprezo e indiferença que me trata. raramente dá-me os bons dias e tenho combatido isso imaginando que acorda desgrenhada, com cheiro na boca e a tagarelar vulgaridades antes das oito da manhã.
tem uma certa piada, sem imaginação já tinha estourado os miolos.


Comentários

  1. Andei ausente, devo ter perdido o fio à meada... Entendi tudo mas não percebi nada ;)

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  2. O teu coração, afilhado, parece um Hostel . Vê lá se não é já tempo de subires na qualidade. :-)

    Beijinho Manel, afilhado maillindo quinté

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  3. Enterra a espada no coração da comodatária das chaves e convida a trombuda mal disposta para jantar.

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    1. a trombuda é demasiado requintada para aceitar convites de um zé-ninguém... e a outra, em breve volta a distrair-se com qualquer coisa...

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  4. Um universo de vizinhas interessantes mas muito indisponíveis, melhor é alargar ao perímetro do bairro:)
    ~CC~

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  5. A coisa não anda nada boa por aí, cigano!
    Para piorar tudo, ainda tens uma vizinha, do andar de cima, a precisar de comprar um colchão novo... Dos bons; dos silenciosos. :)
    Que tal ires lá a casa propor-lhe a oferta do Molaflex?
    Era capaz de ser a felicidade a vir deitar a cabeça no teu colo.
    Pensa nisso!
    Beijos, Manel.

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    1. até ia com ela experimentar colchões, se ela assim o desejasse... ou então podíamos testar todos os outros móveis e paredes, e descobrir em qual deles seria mais silencioso... talvez seja o calor que me afecta o juízo.
      beijos Janita

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  6. Precisas de mel e fruta na tua vida. Procura a felicidade num mercado local :)

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  7. foste nomeado presidente do clube do amor livre. só para que saibas...

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    1. Não. É uma ditadura bem direccionada. Não há democracia que a supere.

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    2. sabes que para um conde anarquista nã há ditaduras bem direccionadas...

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    3. Anarquia é muito romântico, mas dá uma trabalheira...

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    4. É. Mas o amor não é anarquia...é um paradoxo...

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  8. Procura-a. Para matar a saudade tens que fazê-la passar fome (à saudade, bem entendido)

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    1. fiquei sem entender quem sugeres que mate... ou procure...

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    2. Procuras a vizinha, matas a saudade que por ela sentes.
      Para a senhora do coro não pensei nada mas duas colheres de veneno na sopa devem chegar...

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    3. nã tenho saudades da vizinha...
      só me incomoda que ela dê tanto uso ao colchão quando estou com a cabeça no regaço da infelicidade... é só isso...

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  9. E férias? Mudar de ares? Dizem que as férias de verão são propícias e o verão não tarda aí. E lá por coisas do tempo, podes sempre levar umas trovoadas na mala.

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    1. oh como era bom mudar de ares... perder-me numa montanha, nadar num poço sem fundo, abandonar a tristeza nem que fosse só por uns dias...

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  10. O teu erro é descansares no regaço da infelicidade, Manel. É natural que ela te visite de quando em vez. Faz isso com toda a gente, acho. Mas não deves aceitar que se tornem íntimos. Visita de médico com ela. Só.
    ;)

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