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O homem que temia escadotes não acreditava no destino. Para ele tudo estava relacionado com a pouca ou grande probabilidade de algo acontecer. O problema de acreditar em probabilidade, é que deixamos de ter explicação quando um grande número de acontecimentos com baixa probabilidade,  ocorrem em simultâneo num curto espaço de tempo, por exemplo, uma semana.
Tudo terá começado no domingo de páscoa, apertado no banco de trás, o homem que temia escadotes adormeceu na viagem de regresso de um mau dia. Ninguém entendeu o seu silêncio no momento em que se cruzou na praia com uma mulher que caminhava com uma criança pela mão. Ela também ficou em silêncio, consternada, olhos nos olhos, o braço estendido pela criança que entretanto se soltara e continuava a caminhar sozinha. Os silêncios são línguas complexas, na maioria dos casos só conseguimos entender se suprimirmos um ou vários sentidos. Até esse momento na praia, o homem que temia escadotes estava normal. Talvez um pouco ébrio com a suave ondulação marítima, o ar fresco. Desafiado para uma corrida pela praia com uma das raparigas às cavalitas, não se fez rogado. Dobrou as calças acima dos tornozelos e correu o mais rápido que conseguia com a moça a incentivá-lo. E foi nesse momento que se cruzou com ela, a mulher que tinha oceanos nos olhos. Pararam os dois, reconhecendo-se, mas como se tivessem por momentos entrado numa outra dimensão paralela e esperassem compreender o que fazia ela com uma criança pela mão, e no caso dele, uma rapariga pelo menos dez anos mais jovem, montada nas suas costas. A mulher foi a primeira a afastar-se, em silêncio. Chamou a criança e correram uma ao encontro da outra. O homem que temia escadotes ficou no mesmo sítio, não se importando com a corrida, nem com a amiga que lhe perguntava se estava bem. Cheio de dúvidas, incertezas, analisando as poucas probabilidades daquele encontro, e no entanto ele acontecera, não era um sonho.
No dia seguinte, o homem que temia escadotes não se segurou quando viajava no tram e numa travagem brusca perdeu o equilíbrio, embatendo com força no outro extremo da carruagem. Ninguém o ajudou a levantar-se. Mas algumas pessoas perguntaram se estava bem, só que o homem não respondia. Segurando o braço ao nível do cotovelo com sofrimento, saiu antes da sua paragem e perdeu-se por ruas onde nunca passara, até sentir que as dores o abandonavam. Não contou a ninguém o sucedido, não explicou o seu atraso, não temeu o escadote, não se queixou do estado do tempo, não bocejou, não almoçou, não jantou.

Na manhã seguinte, o homem que não temia o escadote analisou o cotovelo em frente ao espelho e reparou que não tinha boca. Três dias depois embateu contra uma porta de vidro, nem um ai se ouviu. 

Comentários

  1. o homem viu o que nunca devia ter visto: um futuro de algum passado.

    gosto muito de te ler, Manel.

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    1. obrigado Flor, vindo de ti nem imaginas como fico vaidoso :)

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  2. o homem que temia escadotes era um homem que às vezes se perdia nos sentidos

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  3. Quando o passado nos recorda que aconteceu...
    Dá tanto jeito os "cotovelos" não terem boca...

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  4. Um homem que não acredita no destino e tem medo de escadotes, tende a perder a boca quando o passado o vem visitar sem aviso prévio.
    A questão da boca resolve-se com uma boa máscara. O cotovelo é mais complexo.

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    1. isso, pode só ter perdido, qual o melhor sítio para encontrar bocas?

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    2. Fácil. Fixas uma constelação à tua escolha, recitas quatro versos de Herberto Helder, caminhas 100 metros ao pé coxinho e depois bebes um shot de qualquer coisa que não contenha veneno. Dormes e no dia seguinte voilà uma boca!

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    3. como esperas que recite ou beba shots sem boca?

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  5. uma probabilidade, grande ou pequena, é sempre uma probabilidade.
    a alma do homem que temia escadotes reconheceu uma memoria e o corpo fugiu-lhe :) alinha o corpo com a alma e plim!
    (gosto de ti, trovisco)

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    1. ugiu-lhe tão rápido que ele caiu... preciso de falar com a d. fernanda, ela tem estado por ai?
      (tb gosto de ti, maresia, pra lá de tanto)

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    2. passou por cá esta semana, de fugida...

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  6. Há visitas do demo!
    Mas após esse sucessivo número de acontecimentos só vêm coisas boas. Para repor o equilíbrio no universo do homem que temia escadotes. :)

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  7. Acho que já me cruzei com esse homem sem boca, que não temia escadotes e com uma dor no cotovelo... :)
    Gostei de te ler

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  8. :)
    Há os chamados silêncios confortáveis como dizia a Mia Wallace :)

    Bonito :)

    Beijinhos

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    1. estes são como aquelas meias que perdem a força e vão descendo até acabarem nos calcanhares, incomodativos...

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  9. Manel, gostava de dizer uma coisa mais simpática e produtiva do que 'gosto tanto, tanto, deste texto', mas não consigo arranjar palavras.

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  10. O problema é que, não podendo sequer dar um ai, o homem vai sufocar nas palavras...

    Beijocas, Stormy octopus :)

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  11. Manel, estás a escrever cada vez melhor.

    Agradecida :)

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  12. Já sei! É Nikolai Gógol, "O Nariz".

    Quando li este post, há dias, para além de o ter achado brilhante, tocou-me um sininho cá dentro: fez-me lembrar algo, também assim bom, que eu já tinha lido. E acabei de descobrir o que é. :-)

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    1. nunca cheguei a ler Gógol, mas agora estou curioso :) obrigado.

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  13. Passou a acreditar no destino e nos silêncios subliminares dos sonhos?
    Puro encantamento viveu esse homem sem medo de olhar...
    Magnifico texto.
    Beijo:)

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    1. acho que nã... continua a ir pelo mesmo, só que sem boca. O que será um aborrecimento se um dia quiser ir a Roma... :) só tolices. beijos

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