faro

Haverá inúmeras razões que justifiquem porque virei na Zoltán e não na Garibaldi, como era habitual, sendo que o caminho mais a direito, sempre que vinha pela Nádor em direcção ao parque de estacionamento na Kossuth Lajos em frente ao parlamento, fosse seguir até ao fim da rua e virar na Garibaldi. Talvez o passeio estivesse com menos gelo, mais limpo de neve, ou os raios de sol no seu poder metafórico me tivessem empurrado, o certo é que me desviei do percurso, virando à esquerda antes de chegar ao fim da rua, contornando o quarteirão pela Zóltan. De muito pouco ou em nada contribuiria aquele súbito desvio para a minha felicidade, mas por momentos julguei que os deuses me eram favoráveis, e por meio de mecanismos ocultos alterassem a minha vontade, colocando-me na mesma rua que ela, vinda sabe-se lá de onde, talvez caída do céu, caminhando com precaução mas determinada. Estaria a uns oito ou nove metros de distância, menos de uma dúzia de passos, uma farta cabeleira dourada ondulando ao vento, atraiu-me como um mosquito esvoaçando em torno de uma lâmpada. Tentei ganhar terreno, diminuir a distância que se entrepunha dando passadas mais longas, com a precaução que o gelo impunha. Talvez viesse de um daqueles prédios, com alguma pressa a caminho do emprego, parecia um pouco vulgar para quem vinha do céu, usando um sobretudo cinza claro largo, que a abrigava do frio até às coxas, cobertas por umas leggings escuras, usadas acima do tornozelo. O mais vulgar na indumentária, para além da bolsa de imitação barata, era o que trazia calçado, uma coisa que tanto podia ser bota ou sapato com um tacão alto, atravancado de ferrolhos prateados que telintavam a cada passo. Continuei a persegui-la, a cada passada ganhava quase duas dela, imaginando que por baixo do sobretudo, as calças justas de malha apertariam um rabinho não muito grande, mas saliente e bem tonificado.  

Pensei como iria abordá-la, podia segui-la até ao seu destino ou passar à sua frente e estatelar-me no caminho. Ela ia achar graça, e não hesitaria em ajudar um cavalheiro bem vestido pegando-me pela mão para me equilibrar. Tinha assim um pretexto para a convidar para um café ou um chá como forma de agradecimento, com a desculpa dos meus sapatos não serem próprios para a neve. Ela ia aceitar, e entraríamos ali mais adiante numa pequena confeitaria muito simpática, onde ela continuaria a rir cada vez que se lembrasse da minha queda aparatosa e bem ensaiada. Mas assim que me aproximei um pouco mais, um cheiro intenso perpetuou-se no meu nariz, uma fragrância com demasiado de tudo quase me arrancou os pêlos nasais, um a um sem anestesia. Se por ventura a tivesse seguido para dentro de um elevador, das duas uma, ou desmaiava, ou vomitava-lhe nos ferrolhos prateados, ou sustinha a respiração até ao primeiro andar e saia.


Mas que desilusão, e nem lhe vira a cara, se calhar era bonita, uma boca pequena sem batom e olhos bagos verdes transparentes e cheios, num rosto perfeitamente oblíquo. Mas aquele maldito perfume que se espalhava e contaminava a brisa pura da manhã, aquele fedor floral que deixava rasto de vários quilómetros, um ramalhete enjoativo espremido de forma contínua contra as minhas células olfactivas, repugnava-me até às entranhas. Atravessei a rua e acelerei a passada o máximo que podia, abandonando o perfume e a ideia de um casamento perfeito. Porque ela podia não ser muito bonita, nem muito inteligente, mas compensava pelo caminhar largo e decidido e a cabeleira loira esvoaçante. 


Comentários

  1. Um perfume pode mudar-se, já os juízos vários,alimentados de quase nada, nem os deuses perdoam :))

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  2. Devias ter virado na rotunda em vez de teres ido em frente...Optaste pelo caminho mais fácil,isso nunca resulta em termos olfactivos*

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  3. O cheiro ou o perfume são sempre importantes. Não dá para fingir que se gosta :)

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  4. Todos nós sabemos da importância vital das feromonas, neste caso, sexuais. Ou há reacção química ou não há, e se não há, nada há a fazer.
    No entanto, e perante o teu embasbacado deslumbramento com o ondular sinuoso da felina de juba de leoa, não teria valido a pena enfiar a menina na sabonária, depois colocá-la a corar ao sol, e, finalmente, pendurá-la no arame a secar ao vento?
    Se mesmo assim a coisa não resultasse, então tentar aspergi-la com "Poison" da Christian Dior. (É tão forte e enjoativo o veneno que oculta qualquer odor corporal).
    Se nada disto fosse eficaz, então, sim, virar costas e nunca mais passar na Zoltán. Afinal, todos os caminhos vão dar a Roma, perdão, queria dizer, a Kossuth Lajos.

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    1. oh sim, mais simples era impossível, como nã me lembrei disso! Fazia tudo como tinha planeado, caia à sua frente, acabava por a levar a ir tomar um chá... entretanto sacava de uma mola da roupa e colocava a pressionar as minhas sensíveis narinas, engolíamos o chá rapidamente... espera, podia atirar-lhe o chá para cima, ou café... sempre suja mais, e depois não sei como dava-lhe um banho. Era muito mais simples proibirem os maus perfumes, ou colocarem uns doseadores de modo a que dispensassem apenas uma quantidade diária... aquilo quase que me amputou o nariz

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    2. “Era muito mais simples proibirem os maus perfumes, ou colocarem uns doseadores de modo a que dispensassem apenas uma quantidade diária...”

      Não era nada mais simples. Podia referir-te toda a complexidade do sistema olfactivo, falar da pituitária, da glândula de Bowman, do tracto, do bulbo, das pilosidades, ou do glomérulo e da célula mitral, já para não referir as diversas disfunções olfactivas. Mas não falo de nada disto, para não me acusares de que gosto de complicar a coisa.
      No fundo, tudo se resume a que não há 2 narizes iguais e a área e as especificidades da pele a perfumar são muito variáveis.
      Simples, simples, é uma banheira de espuma...

      Que tal nós dois
      Numa banheira de espuma
      El cuerpo caliente
      Um dolce farniente
      Sem culpa nenhuma...

      Fazendo massagem
      Relaxando a tensão
      Em plena vagabundagem
      Com toda disposição
      Falando muita bobagem
      Esfregando com água e sabão...

      Claro que este “nós dois” não tem nada a ver contigo e comigo, mas sim contigo e com a gata de cabeleira dourada ondulando ao vento. É verdade que sou loura, mas nem tanto...eheheh..

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    3. as loiras são a minha desgraça...

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