subclávia

Divorciei-me faz este mês oito anos e parece que foi ontem, no entanto não me lembro em que dia foi, só que foi em Agosto. Não planeamos férias nesse ano mas em Julho ela fez-me as malas, só as minhas, e no mês seguinte tratamos de oficializar a coisa. Estranhamente não atirou com a roupa pela janela como se vê nos filmes, nem atolou a mala de vagas tempestuosas enroladas, desocupando numa maré o roupeiro. Quando a ressaca abrandou, descobri contido numa mala um mar pacífico de camisas e calças engomadas, meias casadas e dobradas.
Há momentos que nunca esquecemos, marcamos encontro no parque de estacionamento, estava um calor insuportável, não havia sombras nem pessoas, parecia que de repente éramos só nós a terminar o que já não fazia sentido. Cumprimentou-me com dois beijos na cara em sinal de paz, estava irritantemente feliz e arranjada, levemente bronzeada. Trazia uma blusa clara de alças finas que atavam nos ombros, deixando expostas as covas triangulares do osso da clavícula. Quantas vezes ali passei demorado por serem tão perfeitas.
Naquele momento, lado a lado como no casamento, não podíamos ser mais contrastantes, ou então verdadeiros como nunca havíamos sido. Talvez fosse isso, não havia máscaras, ocultações, o mundo era cru e ela ali estava finalmente transparente. Subterrado na segunda grande ressaca do ano, não aguentava mais aquela transparência que feria os olhos, nem por detrás dos óculos de sol ela diminuía, por isso acelerei a despedida com dois beijos na cara.

Hoje ao fazer a mala lembrei-me dela e sempre que faço a mala para não ir de férias lembro-me dela. Seria errado extinguir toda e qualquer memória, mas no início pareceu-me o melhor e desfiz-me de tudo que a pudesse trazer, e o que não se desfazia mergulhei em águas profundas inacessíveis. Julguei durante anos nunca ter acontecido, era a vida de outro homem que vira num filme ou lera em qualquer lado. Pessoas felizes em trajes felizes. Mas o cheiro dela, aquelas saliências que conhecia tão minuciosamente voltavam em sonhos de tempos a tempos, rasgando as finas camadas de sedimentos de memórias, infiltravam-se perturbando para sempre as madrugadas. 


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