prolepse

Apostar tudo enquanto a sorte está sentada do nosso lado, e podia ficar por aqui que já é tarde, quase meia-noite e estou cansado, pesam-me os olhos nas órbitas como se fossem de chumbo. Mas quando se é narrador a tempo inteiro, não nos permitimos arredar a atenção, dormir é para os fracos e mesmo que a cena pareça uma reprise, um déjà-vu contínuo, há pormenores que farão toda a diferença. Perdoem-me as eventuais falhas na prosa, as minhas limitações e um grão na asa serão culpas suficientes, mas fui bafejado pela sorte, estava ali quando aconteceu.
Ligou a chaleira para preparar um chá e lembrou-se da garrafa de tokaj que o húngaro lhe oferecera. O Maltês ainda estava na entrada, equilibrado numa perna descalçava o pé direito.
Já te estás a despir? Perguntou-lhe a estrangeira com um sorriso trocista e uma garrafa de vinho. Ganhara o hábito de se descalçar desde que chegará à Hungria, e quando entrou pareceu-lhe normal deixar os sapatos à porta e as meias suadas. Corou envergonhado com a observação, voltando a enfiar a meia e o sapato.
 Sentaram-se no sofá, ela mergulhou uma saqueta na chávena e deixou que ele se servisse do vinho. Só tinha copos rasos, mas ele não tinha vontade de ficar, bebeu meio copo em dois tragos e despediu-se.
Já vais? Disse coberta de desânimo, mas o Maltês estava irritado. A noite até começara bem no szimpla kert, previsão de aguaceiros a norte, com possibilidade de trovoadas e vento forte. Inesperadamente o grupo ganhara novas aquisições e na mesma mesa apertados sentava-se o bolchevista, o proprietário húngaro, o maltês que se descalçava, a estrangeira da blusa das andorinhas, e o irmão do bolchevista com a sua parceira turca.
Podia tentar usar os nomes com que foram baptizados, mas não consegui entender o nome da moça turca, e o “bolchevista” sempre o trataram por bolchevista, e a das andorinhas também tem um nome esquisito, maori ou coisa assim, e não sou muito bom com nomes, por isso vou referir-me às pessoas em questão baseando-me numa característica ou traço de personalidade.
Começo pela estrangeira da blusa das andorinhas, a que chegou há pouco tempo como um dia de chuva no verão, e vive agora no antigo apartamento de Alicja. A mesma que vai chegar a casa e ligar a chaleira, e procurar uma garrafa de tokaj que o proprietário húngaro lhe ofereceu juntamente com uma caixa de pastéis. Não levou o que queria em troca, o proprietário húngaro teria de se esforçar mais. A estrangeira era exigente, perder o chão era requisito e o proprietário húngaro apesar da sua marrafa e dos pastéis e do tokaj, faltava-lhe quelque chose! Depois foi a vez do Maltês. Este não precisa de apresentações nem que lhe some mais nomes, já todos o conhecem e Maltês será suficiente. Quando a chuva chegou, a estrangeira de olhos claros testou-o decretando que a tomasse ali mesmo, num recanto mal iluminado do terraço. Mas o Maltês raramente fazia o que lhe mandavam e muito menos fornicaria uma mulher sem que esta o desejasse. Dou por mim a pensar como mede ele essa intensidade. Ali estava ela a pedir-lhe que a fodesse, e ele a declinar porque não lhe parecia suficiente. Burro seria mais apropriado chamar-lhe.
A estrangeira passou então ao terceiro candidato, o “bolchevista”. Ora ai está uma alcunha apropriada que faz todo o sentido, mas será preciso acrescentar que o “bolchevista” apesar de bem-falante, não costumava ter muito sucesso com as mulheres. Talvez um banho, corte de cabelo e uma camisa de vez em quando, as mulheres apreciam essas subtilezas. E foi assim que encontrei a estrangeira da blusa das andorinhas no szimpla kert, babando atenção para cima do “bolchevista”.
Nesta altura as coisas ainda não estavam a correr bem para o Maltês. Ainda não cheguei a essa parte, talvez esteja a precisar de descansar um pouco, retomar a narrativa pela fresca.


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