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-Vou no domingo para baixo, queres boleia? Aceitou, não planeara ir tão cedo, mas tinha sido dispensado do serviço, pagou meia renda e aviou a mala. Estranhou irem no domingo, provavelmente voltavam a Lisboa no final do dia, mas os miúdos não tinham escola, se calhar ficavam lá alguns dias, só se lembrou de perguntar se tinham espaço para uma caixa e um saco, nem a hora a que o vinham buscar quis saber. Entregou as chaves do apartamento ao senhor do café, e sem almoçar carregou o que restara daquele ano até à entrada. Ela saiu para lhe abrir a bagageira, no banco de trás os dois sobrinhos esbracejavam ansiosos. Procurou uns trocos e comprou uma mão cheia de caramelos de fruta para os acalmar na viagem. -Desculpa vir tão tarde, mas sair com estes dois é sempre uma aventura. -Vieste sozinha? -É, o teu irmão tem muito trabalho. 
Distribuiu os caramelos, tarefa dificultada pela variedade de sabores em número ímpar, conseguia sempre o efeito contrário, e em vez de se acalmarem, tinha incitado uma guerra porque ambos gostavam mais dos caramelos com sabor a laranja. -Tu e o teu irmão eram assim, com esta idade? -Nã, no nosso tempo não havia caramelos com sabores... lembras-te das bolas de neve? 
Ela sorriu. Conseguia imaginar uma bola de neve imensa, embrulhada em celofane vermelho rodando por baixo dos seus pés até à infância e ao momento mais feliz da sua vida, depois a adolescência chegara inquietando as águas, abalando os sólidos alicerces onde crescera, do dia para a noite os muros que a protegiam caíram, e para lá do éden descobriu um mundo pejado de perigos. O pior deles todos estava ali, a distribuir caramelos de fruta pelos seus dois filhos, e falava-lhe qualquer coisa que ela não conseguia ouvir. -Era na segunda à direita, por aqui não tem saída. 
Encostou, tinha a sensação que viajara pelo tempo e sem saber como estava ali, na terceira saída da rotunda, em que o alcatrão terminava num silvado alto. -Queres que conduza? 
Conheceram-se numa festa do avante, na altura em que os Telectum actuaram com P. Lytton e E. Parker. Ele andava lá a ganhar uns trocos, ela tinha ido com um grupo de amigas que passavam o tempo a rir e a fumar. A mais corajosa pediu-lhe ajuda com a tenda, uma canadiana de lona enferrujada e comida pelo sol. Lembra-se dele em tronco nu, homem feito, cabelo apanhado, transpirado e sujo. Fecha os olhos e consegue vê-lo, a cravar cigarros em troca de uns minutos da sua atenção, o cheiro é quase o mesmo, a voz é ainda mais grave… Respira fundo e admira-o.
-Fica-te bem o cabelo curto. 

Devia ter casado com ela, apesar da diferença de idades. Depois cometeu o erro de a apresentar ao irmão mais novo, talvez tivesse sido a melhor decisão, sabia que por vontade dos pais dela não era um pretendente à altura, mas o irmão sim, ele era tudo o que eles podiam desejar para a filha. Às vezes sonha que o irmão morre num acidente e ele ocupa o seu lugar, acorda feliz com a ideia. Sentem-se estranhos, como se tivessem sido íntimos noutra vida muito antes desta, mas quem os vir dirá que são um belo casal, e que aqueles são os seus filhos, mais parecidos com o tio do que com o pai que ficou em casa a trabalhar. Os genes pregam destas partidas. 

Os miúdos acalmaram, observam as cegonhas, a paisagem que transmuta em novas cores sob um singular céu cinzento. Também ela foi abandonando a tristeza pelo caminho, não se lhe vê os olhos por detrás dos óculos mas sabemos que esteve a chorar. Discutiu antes de sair de casa. Ninguém leva uma vida perfeita, só aparentemente, para os vizinhos ou diante dos pequenos. Ele disse que afinal não ia, mas ela já se tinha comprometido e era bom para as crianças passarem algum tempo com a família. -Vai com o teu querido cunhado, disse, ou imagino que tenha dito, ele diz coisas assim… e ela magoada, deu o almoço à prole, deixou a loiça na máquina e atirou algumas roupas numa mala, saindo de casa com os olhos a transbordar.

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