tédio



Estou há dois dias encolhido em casa, sai apenas para despejar o lixo e separar a reciclagem, também percorri uns duzentos metros e comprei pão, mas tirando isso estive aqui enfiado, a ver o bom tempo passar lá fora. Perco o apetite, fico deitado até doerem as cruzes e depois levanto-me, penso fazer algo útil, limpar a cozinha ou aspirar. Sento-me só por uns instantes a ponderar, espero que a vontade passe, cinco minutos e afinal decido que vou escrever, ponho o portátil na mesa longe das distracções e das más posições na cama, volto a confirmar que a vizinha não está. Não se vê ninguém, os melros depenicam os quintais à vontade, ontem ainda ouvi a discussão dos vizinhos atravessar as paredes, mas hoje um silêncio alastrou desde cedo, absorvido pelo tijolo manteve-se durante o dia quente, em sossego. Mas não era sobre esse silêncio que eu ia escrever, era sobre perguntas que nunca são feitas, teclas de interrogação que não chegam a ser comprimidas. A curiosidade vai esganando-me lentamente, tem um travo a mel mas arde pela garganta. 
Depois surgem-me dúvidas, o mal é um gajo começar a pensar. Por exemplo, porquê que dizemos pessoas cheias de nove horas? Porque não dez ou oito, e sendo nove, são da manhã ou da noite? 
Juntei os três cadernos pretos em cima da mesa, pautados de histórias, memórias, ou só repositório de palavras sem peias. Folheio o mais antigo, começando pelas últimas páginas, é uma mania, e vou voltando as folhas até ao início, fechando a capa negra com algum delíquio. Quem escreveu sobre estás linhas? Quem substituiu o meu dialecto? É a minha letra, reconheço-a, consigo entender cada letra na sua solidão, mas no conjunto da palavra, numa ordem desconhecida, forma frases sem sentido estranhas ao meu ouvido. Folheio novamente, mas ao contrário, começando pela origem. Já nem é a minha letra, são hieróglifos, e cada vez que passo as páginas de trás para a frente ou da frente para trás, desenham-se por eles, redefinem-se em formas estranhas mantendo as camadas de tinta. 


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