Zellige
A organização mundial dos deuses unidos reunia todos os anos
num magnífico palácio reservado para a ocasião, junto à foz do rio Cebu. São
cento e cinquenta quartos, duas piscinas interiores, duas exteriores e mais de
dez mil metros quadrados de jardins exóticos à disposição, de forma a tornarem
a tarefa um pouco menos fastidiosa. Durante uma semana todos os deuses ficam
enclausurados nas muralhas que cercam o palácio, com a finalidade de debaterem
os problemas do mundo. Mais de metade do tempo é gasto em discussões absurdas e
quezílias sobre quem tem mais poder, quem governa sobre o quê, ou que deus é
mais admirado pelos mortais. É também um concurso de egos, por isso o espaço
amplo é de extrema importância para manter uma certa ordem.
O secretário maioral pedira máxima descrição a todos os
participantes e por isso fui um dos últimos a chegar, classe supereconómica, já
a lua tinha subido no céu limpo e frio. Acordei um dos poucos funcionários que
permanecem no palácio nesta ocasião e encaminhou-me por arcadas e riades
menores, fontes e pequenos jardins interiores até aos meus aposentos. Fico
sempre deslumbrado com os tectos trabalhados, as madeiras de cedro, os mosaicos cerâmicos coloridos com arabescos ou padrões geométricos
perfeitos. Era espectável que num ambiente assim sonhasse com a perfeição, o
universo finito e os elementos.
O salão do conselho é decorado com frescos, mármores claros
e vidros de Murano. A assembleia está sentada num quadrado em poltronas de
veludo verde baixas, rodeadas de um segundo e terceiro quadrado, aberto por um
corredor de tapetes corados com flores de papoila. Wōdanaz destacava-se
imponente no centro, em pé, dirigindo-se para toda a assembleia. No extremo
oposto, na segunda fila, Tanit acenou-me discretamente. Ao seu lado estava
Vishnu que lhe oferecia uma porção de rapé no sulco da mão. Tanit aspirou e
deixou a sua mão sobre o braço de Vishnu. Pareciam íntimos. Procurei Hécate
entre a segunda e a terceira fila, a deusa das chaves podia ajudar-me com as
contracturas. Acenei-lhe, mas ela não me viu. Levantei um pouco mais o
braço, os olhos claros da deusa encontraram-me, mas Wōdanaz foi mais rápido.
“Desejais pedir a palavra, Tlaloc?” Perguntou o representante máximo da
assembleia. “Nã, nã… Oh grande!” gaguejei “foi apenas um espasmo!”
Hécate, a deusa tríplice, ria do meu embaraço. Vishnu pediu a palavra e tomou o lugar de Wōdanaz no centro
do salão. A minha atenção estava toda concentrada em Hécate a quem propunha, em linguagem gestual, um negócio favorável à deusa em troca das suas
habilidades como massagista. Ela revirara os olhos várias vezes, mas eu estava
seguro que ia ceder. Não ouvia as palavras caras de Vishnu quando ele sugeriu
que se retirassem os poderes sobre os elementos a certos deuses, a respeito das
alterações climatéricas que colocavam o planeta em risco. Wōdanaz interveio.
“Esclarece-me Oh magnífico Vishnu! responsabilizas os deuses dos elementos pelo
aquecimento global dos últimos cem anos?”. A partir daqui comecei a prestar
atenção. “Oh Grande, Supremo Wōdanaz, só responsabilizo um, que me parece pouco
consciencioso do poder que detém, já que só ele reina sobre as nuvens e todos
os ventos.” Toda a assembleia se voltara nas poltronas e me miravam expectantes
que eu tomasse da palavra e a usasse como uma lança para ferir Vishnu, o deus
dos mil nomes. Levantei-me e dirigi-me a
Vishnu, no centro, com a coragem a transudar. “Oh sublime Vishnu, permite-me
saudar-te e alegrar-me com o teu reconhecimento, eu que sou um deus menor, um
súbdito do grande senhor dos mil nomes, usares as tuas mestras palavras para me
enalteceres perante todo o panteão. Estou-te tão agradecido, oh sublime!” Levei
os joelhos ao chão numa vénia, não por devoção, mas porque a coragem já se
tinha escoado e as pernas falhavam. A assembleia ria do espectáculo, com excepção de Vishnu que sofria de falta de humor. O deus estava a ficar azul quando Wōdanaz pediu silêncio e aborrecido deu a sessão por terminada.
Hécate apareceu no meu quarto mais tarde, quando a lua já
estava a descer. Havia uma tensão estranha, tinha muita vontade de a beijar, o cheiro dela deixava-me tonto, mas permaneci a cinco metros de distância enquanto as negociações decorriam.
Aceitou em livrar-me das contracturas. Em troca terei de lhe regar as plantas e passear o cão. Durante um mês.
Cruz, credo!!! Ainda bem que eu, enquanto filha de um Deus Menor, não fui convidada para essa orgia... ou forró ou lá o que é isso.
ResponderEliminarJá disseste à Hécate para comprar cactos?
Belo texto, Manel... :)
Ias gostar, nem que fosse só pelos jardins :)
EliminarSe Hécate tivesse cactos, eu teria ainda mais contracturas nas costas... é verdade que está carregada de defeitos, mas tem umas mãos de ouro :)
Obrigado, Janita!
Que mau negócio!
ResponderEliminarnã viste as minhas costas... acredita, eu tenho jeito para o negócio:)
EliminarOlhe que não, olhe que não!
EliminarÉs o unico cigano do mundo que não sabe negociar. Saía-te mais barato recorrer a um fisioterapeuta!
Mas melhor para nós que ficamos com o texto. Obrigada.
ps Vi o '1917 ' e é muito bom. Vai ganhar o Óscar.
este fim de semana vou ver o Jojo, depois no outro talvez veja esse...
EliminarLindíssimo, consegui ver a assembleia, com a ajuda das minhas memórias de Roma, bastante plausível:) . Também fazia esse negócio, ainda que passear o cão não me seja familiar.
ResponderEliminar~CC~
Até um crocodilo passeava, só para me ver livre desta dor nas costas...
EliminarSenti-me muito em casa em Roma, noutra encarnação devo ter sido muito feliz por lá :)
Por mil deuses ou mil macacos! Erga-se o Olimpo de novo! (tão bom, Polvo das Trovoadas!)
ResponderEliminarO Olimpo e o Osujo, tudo no mesmo episódio!
EliminarObrigado Flor
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