sintoma

 Preciso de me tratar! Disse o rapaz com epíteto de planta aromática. Não entendi. Ele repetiu e continuei a ouvir o que achava que era efetivamente necessário, mas afinal ele estava a dizer que tinha de se hidratar. Nesse dia fui a uma consulta de oftalmologia a pensar se não teria sido um dinheiro mais bem gasto uma consulta no otorrino. Mas foi um périplo interessante, por momentos senti que tinha entrado numa das muitas histórias de ficção cientifica que costumo ler. 

O ambiente era perfeitamente estéril, as superfícies eram na sua maioria brancas e cinzas, com apontamentos raros de um azul muito frio. A primeira sala de espera para onde fui despejado, era num corredor e as poucas cadeiras que tinha, eram meras sugestões de cadeiras. Os funcionários pareciam todos humanoides, cuja energia era poupada a todo custo. Quase senti que me seria debitado cada sorriso que um deles esboçasse. Vinte minutos sentado na extremidade plástica e rígida e o meu número, o A220, apareceu num écran cheio de outros números e outras letras.  Entrei numa sala com o dobro do tecto onde estava um humanoide e o único funcionário de carne e osso, que parecia tão deslocado quanto eu. Recebi de imediato ordens breves e precisas do humanoide para deixar os meus pertences junto à porta, depois, sempre em velocidade cruzeiro, fui questionado quanto ao nome completo e idade, doenças, medicação, etc. Enquanto o humanoide continuava a registar os dados, convidaram-me a sentar num canto, por detrás de duas máquinas, que o humano iria operar, pareceu-me a mim, pela primeira vez. O início correu bem, era aquela máquina onde se coloca o queixo e encosta a testa, e lá no fundo se vê um colorido balão de ar quente. O humano, com a voz a tremer e uma pronuncia carregada não sei de onde, instruiu que a imagem iria tornar-se desfocada, mas que era mesmo assim. A máquina cuspiu um papel que o humanoide arrancou com pujança e analisou automaticamente, enquanto passávamos para a segunda máquina. As mesmas instruções, pousar o queixo e encostar a testa, só que neste caso era uma luz verde, tipo laser mortal. Não está a funcionar, reclamou o humano. O humanoide empurrou-o num gesto exasperado, sabia que logo ali me iriam cobrar mais só por aquele consumo extra de energia. Claro que está a funcionar, só tem de fazer assim... eu continuava com a cara encostada à máquina e pensei, é agora que me arrancam os olhos para vender no mercado negro. Segunda tentativa e nada. O humanoide devia estar a mudar de cor, mas na semi-escuridão e com a cara encostada aquela coisa, não consegui ver. Senti a tensão aumentar, se aquilo não ia a bem, ia a mal. Desencoste-se senhor..., lá se lembrou de pedir, antes de abanar com toda a força o braço mecanizado. Prontos, este fica sem efeito, se depois a doutora achar que deve ser feito, volta para repetir. Agora encoste-se à parede. Imaginei que seria assim que se sentem a maior parte das pessoas que são fotografadas para o registo prisional. A parede estava gelada, assim como eu. Passaram então à parte do alfabeto projetado na parede, teste em que tirei nota máxima, embora e devido à minha ligeira dislexia, por pouco não trocasse os Ks por Os. Feito mais um teste, com um atraso de pelo menos dois centésimos de segundo, com um custo acrescido de vário euros para o cliente, o humano/estagiário entregou-me um cartão tipo livro, que eu já reconhecia de outras vezes, com imenso palavreado sem sentido e cuja finalidade é só nos fazerem ler a última linha, tipo um contrato manhoso. Não consigo, disse. Está demasiado escuro aqui. Realmente, disse o humano/estagiário para o humanoide/tutor, se calhar era melhor acender as luzes, mas assim em jeito de pergunta, ao que este respondeu, revirando os seus olhos mecânicos até ao topo da testa: O que é que acha?

Fui ejectado de volta para a sala de espera, a mesma pseudocadeira, o mesmo écran cheio de números, até as pessoas que lá estavam, vítimas como eu, pareciam as mesmas. Aquele sítio era opressivo. Toda a gente sussurrava, só se ouvia um bip a cada número que saltava no malfadado écran, mas ninguém se mexia. O meu número surgiu de novo, mas em lugar de me indicar um dos vários gabinetes, transferia-me para uma outra sala de espera. A sala D. Olhei em volta, para tentar perceber qual era a letra daquela suposta sala de espera. Foi nesta altura, e pela segunda vez, que pensei em fugir. Sair assim de mansinho pelas portas automáticas, como se procurasse o WC. Mas se eram automáticas, certamente seriam controladas por inteligência artificial, a mesma que operava todos aqueles técnicos e profissionais humanoides. Levantei-.me e dirigi-me hesitante por um longo corredor de portas iguais até à próxima sala de espera D. De novo as mesmas cadeiras, mas outras caras, uma máquina de venda com artigos coloridos e luminosa que aquecia a sala e, admirem-se, janelas. Janelas verdadeiras, reais, pareceram. Mas não me aproximei, com receio de descobrir que tudo era mera ilusão, criada por paredes écran. O ambiente era diferente, as pessoas falavam mais alto, um homem diante da máquina de venda, ligava para o apoio ao cliente porque o chocolate estava fora de prazo. Enquanto isso, a criança que ele provavelmente preferia ignorar, tentava atacar-me com uma espada de luz. Pela segunda vez em menos de uma hora, temi pela minha integridade. Peguei no livro e tentei ignorar tudo o que acontecia à minha volta. Quando estava embrenhado numa cave na lua rodeado de inertes*, fui chamado para uma sala que ficava próximo da outra sala de espera, a suposta C. Lá fui eu de novo pelo corredor de salas. Quando entrei, a médica era ainda mais perfeita do que todos os outros humanoides. Parecia a encarnação de uma deusa grega. Nem me deu tempo de sentar, despachou-me em menos cinco minutos, depois de me mandar olhar para os lóbulos perfeitos das suas orelhas, pois aquele nível exigia que os clientes dessem um rim se ela gastasse mais tempo em observações ou considerações. 

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*Ubik de Philip K. Dick

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