borra

 As turcas já tinham disposto o almoço que haviam preparado ao longo da mesa. Era tudo um pouco estranho. Estranha era também a forma como ficamos todos sentados: de um lado da mesa a comitiva turca, do outro lado os convidados para a última ceia. Talvez porque sofro de alguns problemas mentais e gosto de me sentar com as costas protegidas, escolhi a cabeceira da mesa no extremo da ala este. No outro extremo, próximo das grandes portadas, ninguém se sentara. Pela disposição, quem ali entrasse, acharia certamente que algo de muito solene se estava a passar em torno de uma mesa desproporcional toda ela sobejamente ornamentada, despida de atoalhados, onde haviam colocado ao longo do seu centro e de forma bastante precisa, diversas travessas, pratos, púcaros e alguns tachos de comida. As turcas estavam de pé, seguravam colheres e pinças, que usavam para apontar e explicar os diversos ingredientes que haviam utilizado. Os convidados foram ocupando os seus lugares. Do extremo da mesa, do lugar onde se paga a conta, fui registando mentalmente a cerimónia e rasgando elogios aos dotes culinários das turcas, que aguardavam com fervor os nossos comentários. Na realidade, tudo me soube um pouco ao mesmo, talvez alguns pratos tivessem mais cominhos que outros. Os doces, apesar dos avisos, não eram mais doces daquilo a que estou habituado, mas o esforço, a iniciativa, valiam o meu empenho em repetir como tudo era maravilhoso. E então foi aí que surgiu o café. Estava a iniciar a degustação de uma sobremesa, que se assemelhava a puré de batata em aspecto, quando me perguntaram se queria experimentar o café turco. Era óbvio que sim, dificilmente negaria um café, nem que seja uma água suja mijona, mas não imaginava que ao aceitar essa generosa oferenda, obrigaria a toda uma logística em que as turcas que entretanto se haviam sentado e comiam de colher e garfo, se levantaram todas ao mesmo tempo e ligavam a uma longa extensão uma pequena máquina que traziam com elas. Senti-me um pouco mal por ter dito que sim ao café, quando elas ainda nem tinham terminado de comer. Tentei emendar, mas já não havia volta a dar e elas falavam animadamente entre elas, em torno da pequena máquina, de costas voltadas para a mesa, conjurando ali talvez uma poção antiga. Ao fim de uns minutos o café surgiu. Uma chávena cheia até cima, com uma leve espuma mais clara no topo e no fundo, como explicaram, um pó muito fino que ia assentando e que poderia depois revelar o meu futuro. Bebi o café em dois tragos, na ânsia de verificar como seria essa ciência milenar de ler borras.  Mas a exploração dos futuros exige o seu tempo e todo um procedimento que me foi pacientemente explicado pela turca que estava mais próxima de mim. É feio não dizer os seus nomes, mas a verdade é que não consegui sequer repetir corretamente nenhum deles, e mesmo algumas palavras mais simples como sim e não, me pareceram impossíveis e sempre que tentava pronuncia-las, elas riam imenso. Continuando: Depois de bebido e apreciado o café, é necessário colocar sobre a chávena um prato, ou um pires, e voltar a chávena com a respetiva borra para que escorra. Mas essa volta deve ser efectuada na direção da pessoa a quem o futuro vai ser desvendado. Depois, é necessário que a respetiva chávena arrefeça. Para facilitar, colocam um anel no fundo da chávena. A turca mais distante emprestou um dos grandes anéis trabalhados que trazia.  Cada passo que me era explicado, era também conferenciado com a restante comitiva, tudo em turco e com algumas risadas pelo meio. Por fim, e porque a minha chávena parecia renitente em perder calor, elas usaram uma aplicação que após umas quantas fotos às imagens criadas pela dispersão da borra, o futuro foi-me realmente revelado num longo texto, do qual apenas memorizei que constavam golfinhos. E parece que ter golfinhos não é coisa boa, pelo menos pela cara que elas fizeram.

Comentários

  1. Então, Manel, recomeçaste a sonhar ou foste a uma conferência, até à Turquia? Convidado não paga conta, não sei porque te sentaram nessa extremidade da mesa. Já não estou nada a gostar disso... Creio que essas turcas eram pouco fiáveis. :)
    O meu rapaz já lá esteve e gostaram da comida. Variada, apetitosa, porém, demasiado condimentada. Mas os doces eram muito bons.

    Não te deixes influenciar pelo que disseram as borras, os golfinhos são amistosos e daí nada de mal te virá.

    Beijos e abraços, Manel. :)

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    1. as borras também prediziam uma traição por parte de uma amiga de cabelos escuros :D tenho estado atento
      o sentar à cabeceira acho que é um pouco mania, mas gosto de ficar num local onde consiga ver tudo e ao mesmo tempo nã seja surpreendido pelas costas... são coisas :D
      tu nã tens manias?
      beijos e abraços

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  2. Golfinhos só podem significar coisas boas, eu adoro-os! Já provei café turco mas sem leitura de futuros...e gostei muito

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    1. pois, já me disseram que é coisa do coração, mas as moças torceram a cara, isso é certo, por isso espero o pior ou o que estiver para vir... é o que tiver de ser :D

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