ouvidos

 De manhazinha o homem já levava consigo o par de ouvidos extra que tinha deixado crescer ao relento. Bem jeito lhe fizeram, mais do que aquele nariz selecto que só lhe dava náuseas no transporte húmido. Devia ter trocado as duas narinas por mais dois olhos, ou então por um dedo médio extra em cada mão, pensava enquanto tentava desafiar as leis da propagação de partículas. Quando o cheiro a corpo e roupa molhada se afastava, conseguia voltar à leitura, como se olhos e nariz estivessem ligados na mesma tomada, e o uso de um impedisse o uso do outro. Tacteou o embrulho de papel de seda onde os ouvidos extra se mantinham frescos no bolso. Talvez os trocasse por figos maduros, ou talvez fizesse uma enxertia de ouvidos nos calcanhares. Estava nisto a pensar o homem, que tinha na boca um leve sorriso, quando dele se aproximou a rapariga que sonhara com coelhos e tarântulas. Levava a mão à cara, pernas de aranhas prendiam-se no interior da bochecha e as lágrimas rolavam, explicava, sem que o homem tivesse tempo de as apanhar num lenço. Tudo se vai resolver, disse o homem que tinha ouvidos extra, vais ver que os teus receios são infundados e essa tarântula não é mais que uma pequena aranhita que apanha boleia no vento. Depois ao aproximar a hora do almoço, foi a vez de dar ouvidos a um amigo de muito tempo. Às vezes julgamos a vida dos outros fácil e quando se abrem a meio e nos deixam ler como livros, descobrimos que os mares de rosas são sobretudo pântanos lamacentos de espinhos. O homem ouvia e tentava animar o amigo, dar-lhe coragem, porque às vezes quando se oferecem ouvidos, eles vêm acompanhados de algumas partículas de animo e fragmentos de coragem. Estes são daqueles problemas difíceis e que não se resolvem com vento. O homem oferece o que tem e tenta ficar com alguma da angustia. A angustia é terrível e pesa como chumbo. Pensa em usá-la na próxima vez que for à pesca. Não se arrepende, escolheu palavras e silêncios e espera encontrar na manhã seguinte um novo par de ouvidos extra.

1889 self-portrait of Vincent van Gogh


Comentários

  1. Que nunca lhe falte essa capacidade de ter ouvidos extra para usar quando é necessário e de absorver angústias, talvez isso se chame amizade.

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    1. O homem nã sabe bem o que isso seja, mas o certo é que no dia seguinte recebeu uma caixa de figos frescos :D

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  2. Ter um par de ouvidos extra é uma coisa boa, para usar quando os originais já estão cheios. Depois é só armazenar tudo na caixa craniana do lado esquerdo, e colocar os suplentes.
    Hás-de dizer-me onde se arranja desse material. Eu já tenho o ouvido direito entupido e não tenho maneira de comprar, ou alugar, quiçá, outro. Só me aparecem do mesmo lado... :)
    Abração, Manel!

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    1. curioso que também sofro do mesmo lado auricular! haverá alguma explicação científica, ou é pura casualidade?
      abraço e beijo, Janita

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  3. tu também tens vários corações extra... saio daqui sempre com o meu acompanhado...

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    1. nem um, quanto mais vários :D é tudo bluff ou então ventosidases

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  4. Percebo. Não devemos oferecer esperando algo em troca, mas figos são figos...

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    1. aguento o verão com impaciência só pela degustação dos figos :)

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