Milú

 

Encontrava-se o Conde de Lagareyro enfadado na leitura de um belíssimo exemplar dos clássicos forrado a pele, semi-deitado numa chaise-long em veludo verde menta junto às janelas que abriam para o jardim, quando o criado chegou com o correio. Estremeceu da cabeça aos pés ao reparar que entre os diversos convites que habitualmente recebia para jantares, recepções e inaugurações, havia um envelope branco simplório, formato dl, em todo parecido com aqueles que as finanças nos enviam. Esperou que o criado saísse da sala antes de esventrar o estranho sobrescrito com o pequeno abre-cartas de osso e prata italiano. As mãos tremiam-lhe, pequenas gotas de medo haviam-se formado na sua formosa testa condal e resvalavam até ao seu nariz aquilino. Finalmente a autoridade tributária e aduaneira encontrou-me, pensou, estou frito! Mas não era o caso. Quem lhe escrevia era Dona Luísa, Condensa de Corner & Key. O Conde já não tinha bem a certeza se Dona Luísa era prima em décimo terceiro grau dos Viscondes de Kulcs sarok, ou se seria sobrinha bisneta dos Duques de Cantonada de la Clau, mas suspirou de alívio e enxugando a testa ao lenço de bolso em seda, onde pequeníssimas caveiras douradas brilhavam num fundo negro macio, dobrou a carta e o envelope, perdendo momentaneamente o interesse na missiva. Abriu então os outros envelopes mais pequenos e distintos, primeiro em papel dourado com um grande brasão a meio, depois o lilás pálido com uma fita de cetim, e por último o artesanal que incorporava fibras e flores, pequenos talos de couve, todos eles perfumados requintadamente. A primeira dessas cartas de caligrafia exagerada continha paixão ardente e uns lábios pegajosos cor de sangue, que fizeram o Conde sorrir de vaidade. A segunda convidava-o para um evento qualquer sobre pedras e fósseis que o fez abrir muito a boca de aborrecido e a terceira solicitava a sua presença num jantar que iria acontecer dali a alguns dias e cujo menu só por si lhe provocava um crescendo de saliva. Langoustes à la Parisienne, Truite du lac à la sauce pistache, Filet de boeuf Mazarin, Faisans de Bohême truffés, tudo bem regado com Châteauneuf-du-Pape… muito e por aí em diante. O Conde fechou os olhos e quase sentiu a carne tenra do faisan a despedaçar-se na boca, o cheiro da marmelade d'échalotes au vin rouge, as pommes de terre fondantes deliciosas, mas os lardons, Deus do Céu, os lardons fizeram a água resvalar pelos lábios. Limpou a delicada boca ao lenço de bolso e resolveu chamar o criado, esticando-se para a sineta que se encontrava em cima da mesa lateral de faia e mogno com belos arabescos embutidos. -Dá-me licença Sr. Conde? Interrompeu uma vozinha que estava rouca de tantas horas sem falar. Do meio dos envelopes, um pouco trôpega do perfume, saltitava uma pequena aranha valendo-se das oito patas para se manter segura. -O meu nome é Milú e Madame Luísa de Corner & Key enviou-me para a companhia de Sua Excelência durante o período em que se ausentará para a sua visita anual às termas de Szechenyi. O conde estava de queixo caído. Nunca tinha conhecido uma aranha tão bem-educada e cheia de bons modos, e ainda nem sequer imaginava que a sua tutora era nem mais nem menos que a temida Duquesa de Tűz kés. E que sua Alteza, Capitã-mor Cuca Melissa Pamela, lhe ensinara a tocar piano e a falar chinês.  




Comentários

  1. Quem ficou de queixo caído fui eu, humilde serva deste Palácio encantado, onde um belo Conde cigano, porém legítimo de Lagareyro, escreve uma missiva de fazer tremer de inveja um certo cavalheiro de seu nome: J. Eustáquio de Andrada, actualmente, professor jubilado do Magdalen College...Adiante.
    Só espero, no mais fundo deste meu paupérrimo coração, que a bela missiva seja lida pela mui nobre Duquesa Flor de Lótus, mais conhecida nos meios aristocráticos e maledicentes, por Duquesa Tur Kês e, sobretudo, pela tutora da gentil, jovem e desamparada Milu, a Sô Dona Condensa Luísa de Corner & Key, pois me parece que a pequena aranha se encontra num estado de saúde deveras periclitante.
    Que seja passada de mão-em-mão este meu apelo, em virtude de mais nada ter capacidade de fazer, senão apelar - e depenar galináceos para as canjas do meu Amo e Senhor - Dom Conde de Lagareyro...

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    2. Canjas, Dona Janita Duquesa de kihi liʻiliʻi, canjas é tudo o que peço, pois nem sei se de tal serei merecedor :)
      (fico feliz que tenhas gostado, veio um pouco tarde, mas cá chegou)

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    3. Gostei muito sim. Só lamento que, tanto a Flor quanto a Luísa, andem desaparecidas destas andanças e não possam ler-te. Ou será que podem? E se...

      Beijo, Manel.
      És um escritor com uma imaginação invejável.
      Parabéns.

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    4. Cara Duquesa, é importante que lhe diga que me diverti muito a escrever tudo isto e que de algum modo acredito que chegará até elas, leve o tempo o que levar :)
      obrigado pelos elogios imerecidos e pelas canjas :D beijos

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    5. Vim reler a bela missiva, escrita pelo punho do formoso e culto Conde de Lagareyro e fiz o que devia ter feito há cinco atrás.
      Fui ler os comentários da então tutora da pequena Milú, a Condensa de Corner & Key e fartei-me de rir...Não é que aconteceu aquilo que eu tanto almejei há três anos atrás, quando rezei a todos o deuses e deusas que a «aranhita» se albergasse na tua casa para te dar ânimo? Eheheheheh
      Agora acredito que, demore o tempo que demorar, tanto a Luísa quanto a Flor e a Capitã, um dia irão ler esta missiva digna de figurar nos anais da História ABEF. (Arte de Bem Escrever Ficção )
      Beijos, Conde de Lagareyro. :)
      Bom domingo.

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    6. Eheheheheheh, foram necessários três anos, mas aconteceu! tudo que tem de acontecer, mais tarde ou mais cedo acontece, é o que eu penso, por isso, se tiver de acontecer...
      beijos, boa semana estimada Duquesa

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  2. A Milú era a aranha da Cuca, a pirata, certo? Esperemos que não tenha de ficar infeliz para voltar a escrever...gostava dela, mas saudades a sério tenho da Flor. Já a nossa querida Luísa, tenho expectativa que tira férias prolongadas mas não nos abandonará. Que a Milú tenha ficado à sua guarda é um apelo muito grande, espero que elas o oiçam.

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    1. confesso que perdi um pouco o fio à meada e nã sei dizer a quem pertence a pequena Milú... só sei que andou de mãos em mãos como já aconteceu anteriormente com uma vaca, por exemplo. Espero que voltem, até porque é de uma enorme irresponsabilidade deixar um ser vivo entregue assim a um indivíduo com muito pouco juízo.

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  3. Saiba, estimado Conde de Lagareyro, que Madame Luisa de Corner & Kea lhe fica eternamente grata por tomar a seu cargo a pequena Milú. Coitadita, andava num desespero, pois encontrava-se por estas terras do sul quando a Duquesa Flor se ausentou para parte incerta, tendo encerrado as portas do seu castelo e inclusivamente vedado todas as frestas do imóvel. Por outro lado permanece o mistério quanto à possibilidade da Capitã Cuca tirar o barco do estaleiro rumo a novas aventuras. Entretanto, em Corner & Kea encetou-se um retiro espiritual, desconhecendo-se ainda data certa para seu término.

    [ mas, olhe, … não me chame condensa, que me põe tensa… ☺ ]

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    1. Caríssima Madame Luísa de Corner & Kea, é com muito agrado que lhe comunico que a pequena Milú se encontra bem e que tem sido como um bálsamo revitalizante para a minha pessoa. Não há baile ou jantar a acontecer nas redondezas sem a nossa presença, portanto só lhe tenho a desejar um bom retiro, mas que regresse!
      (eheheheheh, assim que escrevi Dona Luísa, Condensa de Corner & Kea achei que lhe vestia como uma luva :D)

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