xeromorfo

 

A câmara de sono já tinha terminado há muito o último ciclo mas deixei-me ficar, de barriga para cima, como se flutuasse entre o abismo de realidade e o vórtice ascendente do inconsciente. Quando o fazia, arriscava-me a ser devorado e triturado pela consistência fulmínea de um pesadelo. Mas era assim que resgatava os sonhos, acordando na fração em que se condensavam numa fina memória, semelhante a fios de seda húmidos que se colam. A bebida licorosa translúcida era servida nos pequenos copos que costumavam ser usados em casa dos avós. Copos com pé, lapidados dos lados em pequenos círculos baços, um pouco imperfeitos, provavelmente feitos à mão. Estava junto a um balcão de madeira envernizado, antigo, maciço como se ainda fosse floresta enraizada. Por cima havia um vidro lascado que separava o cubículo de atendimento e as pessoas que pretendiam comprar bilhete. Como esperavam que eu conseguisse passar pela abertura que havia entre o vidro e o balcão? Talvez a resposta estivesse no licor translúcido que ao ser agitado no copo, ganhava uma consistência de nuvem filamentosa, semelhante a uma medusa. Ela tinha passado e esperava-me do outro lado, aquela que tinha sido esposa em tempos, com um cabelo diferente, curto e claro. Nem me lembro com detalhe do seu rosto, ela apareceu porque o meu pai a invocou na conversa que tivemos sobre o forno novo. Já não me lembrava que ela tinha derretido aquela pega, é como se nunca tivesse existido.






Comentários

  1. Então o que é isso? Estás a desaprender a chuva? Cá para os meus lados é que há seca ... :)

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    1. temos de nos adaptar, até quem vive da chuva :)
      infelizmente nã será apenas um problema do sul de Portugal...

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    1. muito obrigado, vindo do Ricardo é um grande elogio
      bom domingo, abraço

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  3. Já hoje tinha vindo ler o teu escrito e abalei sem saber bem o que dizer-te. Voltei agora e reli-te. Continuo na mesma Não sei onde vais buscar tanta imaginação, tanto saber, onde cultivaste o teu conhecimento sobre uma infinidade de coisas que eu nem antes ouvi falar.
    Olha, Manel, seja no deserto, seja no espaço, seja no mar ou seja lá onde for, uma coisa eu sei: quem não é nada, mesmo nada, xeromorfo, és tu! :)

    Abraços, Manel.
    Dorme bem... aí já vai para 1:00 da madrugada.

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    1. nã é preciso dizer nada :)
      mas obrigado, escrever ajuda a suportar a falta da chuva e do frio
      bom domingo, abraço

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