falange

No início escrevi para não roer os dedos. Já estavam pela metade, aproximadamente meia falange média, quando agarrei na caneta e comecei a vazar. Não sei explicar de onde veio aquela torrente, mas enchi linhas que encheram uma casa, transbordaram abruptamente pelas janelas, inundaram várias ruas, entupiram todo o saneamento de uma cidade, até que por fim desaguaram num mar que parecia não ter limites. Durante vários anos escrevi dia e noite, iludindo o sono com uma capa de toureiro, sonhando acordado no trânsito, dobrado em contracturas sobre a montanha. Multipliquei-me para me abandonar e depois encontrar-me perdido uma página à frente. Cruzei descalço o espaço, visitei as estrelas sem oxigénio, contei grãos de areia para sublimar palavras, até só restar uma poeira de pensamento. 
Os dedos recuperaram pouco depois, mas a escrita nunca foi a mesma. Desapareceu a urgência do salvamento, a fome insaciável que rugia na aurora, o amor de estimação sentado no colo. No fim escrevi para não morrer, transparente como um fantasma.

Comentários

  1. Tudo motivos desgastantes, Manel.
    Escreve sem pressa nem ambições, sem dores nem angústia.
    Escreve pelo simples prazer de escrever, de desabafar partilhando connosco as tuas alegrias e as tristezas também. Seremos todas ouvidos... :)

    Obrigada por nos contares a razão porque escreves no blog.

    Beijos, Manel.

    PS- Gostei dessa ideia de pegar o sono pelos cornos. Vou aprender a tourear.

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    1. só funciona se nã quiseres de todo dormir... se quiseres empresto-te o meu capote, já nã lhe dou utilidade :)
      beijos, Janita

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  2. A escrita nunca é a mesma, porque nós mudamos a cada dia e só assim faz sentido. Escreva quando lhe apetecer e como lhe apetecer. Afinal, com ou sem a vontade de que fala, a sua escrita continua um primor e é quase um crime privar-nos dela.
    Abraço, saúde e bom domingo

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    1. A Elvira estraga-me com elogios :) nã os mereço mas agradeço do fundo do coração. É natural a que escrita mude, nós mudamos, mas esperava evoluir... ou pelo menos nã regredir :) pode também significar que estou a regredir como pessoa...
      Saúde, bom domingo, um abraço

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  3. Já preparava pragas para te rogar se tivesses fechado o blog. Cair-te-iam irremediavelmente várias partes em equilíbrio da alma.

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  4. Ufa... Voltaste. :)
    Podes roer só um bocadinho das unhas. De certeza que não é preciso mais.

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    1. nã roía as unhas, era mesmo os dedos... uma desgraça e dói que se farta voltar a crescer falanges :)

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  5. A vida é um carrossel de emoções nem sempre fáceis e compreensíveis , mas a nossa essência está sempre lá, e também há sempre umas almas caridosas para nos ampararem, basta que tu deixes ;)
    Essa ideia de fantasma, agradou-me[risos], de repente lembrei-me daquele filme dos anos 80, Caça Fantasmas, acho que era assim que se chamava.
    Bora lá descabelar a semana que começa bem quentinha :)

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    1. Esse aquecimento é parte do problema... fico muito deprimido com a chegada do verão :|
      Boa semana e obrigado pelo amparo :)

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  6. E eis que o "Mau-Tempo" regressa quando começa o Verão!

    Por aqui, tem havido umas nortadas que gelam a água do mar. Como não é todos os dias que temos oportunidade de "meter uma cunha" ao Mau-Tempo, aproveito para pedir vento de sueste. O meu padrasto, homem do mar, diz que é o que aquece a água.

    Ventanias á parte e esperando que nenhuma o leve, dou-lhe as boas-vindas! Fez falta por aqui.

    Um abraço do Algarve,

    Sandra Martins

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    1. obrigado Sandra, sei que com o meu nome nã é fácil ser bem vindo... mas vou ver o que se arranja em ventos de sul e aquecer essas águas :) já merece
      abraço

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  7. é mesmo assim Manel, a vontade vai e vem. E escrever por obrigação não está com nada, escreve quando as letras te correrem nas veias e as falanges estejam doidas de vontade. Gosto do teu escrever e de te ver por aqui :)

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    1. Obrigado Gaja Maria, acho que o calor nã ajuda, fico tomado de uma moleza... o cérebro líquido, verte :)

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  8. Talvez seja hora de parares, então. Antes que te tornes num fantasma dos outros.

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    1. obrigado :) é sempre bom encontrar alguém que se preocupa.

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  9. O sr Manel lembra me sempre alguém que passou pela minha vida, e nem o tempo que já passou ... o apagou.

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