trinta
O homem preparou a massa sob o olhar atento dos jovens. Todos queriam ajudar, mas distraiam-se com mensagens no whatsapp, instagram, facebook. Partilhavam fotos, deformavam-se com aplicações, macaqueavam selfies. Outros seleccionavam músicas no youtube, spotify, e iam afinando vozes e passos de dança. Quando a pizza finalmente saiu do forno, correram para a mesa sem ser necessário chamar. O homem pouco comeu, estava cansado, mas agradava-lhe a mesa cheia e barulhenta. Nunca se imaginara a alimentar tantas bocas esfomeadas que elogiavam a sua arte de criar comida a partir de ingredientes simples. Mas comiam tanto, em segundos tudo o que levara horas a preparar, desaparecia em migalhas. Já se tinha esquecido como seria na idade deles. Tentava esse exercício vezes sem conta, lembrar-se como era, o que fazia, do que gostava com pouco mais de vinte anos. Mesmo eles queriam saber como era, que músicas ouvia por exemplo na escola primária. Ele ria dessas perguntas, era tudo tão diferente, não havia mp3, nem sequer cd’s. Não se descarregava música como se fosse tirar água à fonte. Em oitenta e tal podia escolher ouvir rádio, ou os vinis dos pais repetidos vezes sem conta. E foi então que se lembrou do dia em que o Zeca faleceu. Como se fosse um amigo próximo, um familiar que deixava muita saudade. O Zeca que nenhum daqueles jovens conhecia, o mesmo Zeca que lhe ensinara palavras difíceis como liberdade, desterro, vampiros, piranhas. "Eles comem tudo!" pensava. Queria dizer-lhes que aproveitassem cada dia como se fosse único. Também queria dizer-lhes que não "comessem" tudo, que duvidassem de vez em quando, que não se entregassem. Mas em vez disso ficou a admirar as suas brincadeiras, participou delas como se não estivesse tão próximo dos quarenta, como se os olhos já não tivessem visto muito, como se a pele não se encostasse como dunas nos cantos. Não aguentou ficar para além da uma hora do dia seguinte. Mas sabia que a maioria deles ficariam até muito tarde, e antes de se deitarem, haviam de misturar uns ovos com salsichas na sertã. Disso ele lembrava-se, dos ovos e das salsichas que o salvaram várias vezes nas madrugadas frias, e que continuavam a salvar as gerações seguintes.
não seria nem cigano nem maltês, se o Zeca não o tivesse cantado.
As gerações podem suceder-se, mas há coisas que nunca mudam. Nem os ovos com salsichas nem o bom que é ouvir as músicas do Zeca Afonso.
ResponderEliminaré preciso depositar alguma esperança nos novos :) e muita paciência
Eliminar...e eu; não seria alentejana, nascida e criada no Alentejo,
ResponderEliminarse não viesse deixar-te um beijo comovido...
...oh, cigano maltês, querido...:)
começo a achar que os alentejanos se comovem mais do que qualquer habitante português :) é mais uma qualidade
Eliminarbeijos, Janita
até parecia que estavas a escrever sobre mim. só percebi que não nos 'quase quarenta'.
ResponderEliminarnão me lembro da morte do zeca, só das músicas :)
nã estava, mas por momentos senti-te aqui por cima do meu ombro a ler enquanto escrevia :)
EliminarHá coisas que nunca mudam, e se são coisas boas então, também nunca se esquecem.
ResponderEliminarBeijoca afilhado
se nã forem vividas, nã são aprendidas... é preciso passar o conhecimento aos mais jovens, para eles também nã esquecerem
Eliminarbeijos madrinha :)
um cigano nunca deixa a sua 'tribo' ou os seus costumes.
ResponderEliminaro que mais me agrada são os casamentos :)
Eliminarobrigada por este pedaço de vida que (re)criaste. partilhamos a idade, entre outras realidades do quotidiano (como a sertã :b)
ResponderEliminarum abraço
nã tens de agradecer :) troco pedaços por outros pedaços... e olha que os teus ficam caros :)
Eliminarum abraço ou dois
Costumo vir ler-te silenciosamente, mas desta vez tenho de deixar um comentário.
ResponderEliminarGostei do "pretexto" da tua narrativa para chegar ao chamado key point. Recordar o grande Zeca Afonso e a lástima que é o profundo desconhecimento das gerações mais novas. Culpas do sistema, culpas de todos nós. Ninguém está isento delas. E como o Zeca, outros, como Adriano Correia de Oliveira, por exemplo.
Sabia que no aniversário da sua morte não te esquecerias dele. E, por isso mesmo, aqui estou.
Obrigada por não esqueceres.
Beijo em ti, nesse menino que é cigano, maltês e má rês (sorriso)
penso que é importante transmitir certos conhecimentos aos mais jovens... nã esperar que eles se esbarrem com as noticias, que se interessem sem mais nem menos... é preciso espevitar vontades, ter paciência, e esperança :) o Zeca nunca será esquecido!
Eliminarbeijos anónima :)