Fenrir
Respondeu-me cinco meses depois. Começou por me explicar o que a tinha atrasado, como andou ocupada com os preparativos para o casamento, depois foi a lua-de-mel, a casa nova. Finalmente sossegou e sentada com os Tratas diante de si, escreveu-me uma longa missiva contando como se sentia feliz e realizada, e que eu estava errado, o casamento era a melhor coisa que já lhe tinha acontecido. Como prova do que afirmava, juntara uma fotografia dela com o caga-tacos a seu lado, uma amostra de homem num fato que sobrava pelos ombros.
Fui buscar uma lupa. Por muito que tentasse, não conseguia ver a felicidade que ela descrevia. O brilho que emanava das suas íris escuras, negras como obsidiana, tinha desaparecido e em seu lugar surgia um olhar baço, inexpressivo. Aliás, toda ela parecia baça naquele ramalhete de tule e rendas brancas, pálida de braço entrelaçado numa figura ridícula, que mais parecia uma marioneta adoentada, a quem tinham adicionado uns pequenos óculos de arame dobrado.
Até os seus lábios pintados com o mesmo vermelho que sempre usara, onde tantas vezes vira nascer palavras endiabradas e a língua sair insidiosa, agora assemelhava-se a um vermelho gasto, um tom fraco, muito ligeiro. Só havia uma coisa que se mantinha inalterada: o seu perfume. As folhas estavam impregnadas, desde a primeira até à última. Aspirei longamente o papel, era como se por magia se materializasse à minha frente, dançando na sua tola juventude, nua, a capa escarlate a seus pés. Exactamente o mesmo perfume que ela me havia dado a cheirar na cova muito branca e macia entre o ombro e o pescoço, deixando-me ébrio, quase desmaiado de prazer.
Afastei o perfume, a capa vermelha, a pele leitosa e as íris escuras. Afastei-as o mais que pude regressando às paredes frias da gruta, a gotejar de musgo e escuridão. Dormente, continuei a leitura, saltando descrições aborrecidas sobre a decoração da sala, o tamanho da propriedade, a biblioteca do marido, interessando-me mais a vista de montanha, as madrugadas silenciosas no sopé, os bosques densos que lhe lembravam um outro bosque, noutro tempo, quando os nossos caminhos se cruzaram. No verso da última página, com a mesma caligrafia cuidada, concluía que se sentia muito feliz apesar das saudades, assinando "com amor" e o nome de solteira: Capuchinho Vermelho.
Até os seus lábios pintados com o mesmo vermelho que sempre usara, onde tantas vezes vira nascer palavras endiabradas e a língua sair insidiosa, agora assemelhava-se a um vermelho gasto, um tom fraco, muito ligeiro. Só havia uma coisa que se mantinha inalterada: o seu perfume. As folhas estavam impregnadas, desde a primeira até à última. Aspirei longamente o papel, era como se por magia se materializasse à minha frente, dançando na sua tola juventude, nua, a capa escarlate a seus pés. Exactamente o mesmo perfume que ela me havia dado a cheirar na cova muito branca e macia entre o ombro e o pescoço, deixando-me ébrio, quase desmaiado de prazer.
Afastei o perfume, a capa vermelha, a pele leitosa e as íris escuras. Afastei-as o mais que pude regressando às paredes frias da gruta, a gotejar de musgo e escuridão. Dormente, continuei a leitura, saltando descrições aborrecidas sobre a decoração da sala, o tamanho da propriedade, a biblioteca do marido, interessando-me mais a vista de montanha, as madrugadas silenciosas no sopé, os bosques densos que lhe lembravam um outro bosque, noutro tempo, quando os nossos caminhos se cruzaram. No verso da última página, com a mesma caligrafia cuidada, concluía que se sentia muito feliz apesar das saudades, assinando "com amor" e o nome de solteira: Capuchinho Vermelho.
Leem-se coisas muito boas aqui.
ResponderEliminar(o desenho não é teu... ou é?)
:-)
só sei desenhar polvos e nem mesmo esses são grande coisa :)
Eliminardeixa lá Stormy, eu só sei desenhar cães, gatos, vacas e cavalos e são todos indistinguíveis, entre si, ainda hoje :)
Eliminaràs vezes, com sorte, lá se distinguia uma galinha de um pássaro, mas já nem as crianças me pedem tamanhos atentados à identidade da bicharada :))
tenta polvos, são mais fáceis :)
EliminarManel, a memória olfactiva é algo de poderoso.
ResponderEliminarmuito enganador o cheiro :) nem sei porque tenho um nariz tão grande :)
EliminarQue assombro de post, Manuel!
ResponderEliminarJá tenho o dia feito.
minto se disser que não estava a precisar de festas :) ultimamente nada sai suficientemente bem
EliminarNão é verdade. Mas este... este é daqueles! Tu sabes...
Eliminarsabe o Stormy e sabemos nós, Cuca, o quanto adoras uma boa paulada nos energúmenos do romantismo... :D
EliminarOra esta hein... Agora, uma pessoa fica aqui com as convicções todas trocadas. Afinal a Capuchinho mostra-se pérfida e o Lobo parece-me um doce de pessoa (salvo seja).
ResponderEliminar:)
uma pessoa que apoia caçadores nã pode ser grande coisa...
Eliminar:) quanto ao lobo, nem comento...
Agora que são mais crescidos, é esta a versão da história do Capuchinho Vermelho que vou contar aos meus filhos :)
ResponderEliminarUm texto maravilhoso, com um desfecho surpreendente, escrito de forma irrepreensível, como é, aliás, costume. Parabéns :)
muito agradecido Miss Smile, só me resta acrescentar que nesta versão Capuchinho casa com um doutor médico e nem convida o Lobo Mau para a boda :)
Eliminarai,ai... este lobo sofre de dor de cotovelo.
ResponderEliminarinveja crónica :)
Eliminarescreves tão bem, Manuel....
ResponderEliminartenho boas musas vizinhas, vizinha :)
EliminarApetece uivar à lua!
ResponderEliminarBeijos, Stormy boy :)
se uivares, uivarei contigo :)
Eliminara felicidade nunca precisou de justificações :)
ResponderEliminarO texto está fantástico manel :)
só quando nos queremos convencer de que somos realmente felizes com o que somos... ou nã? a vida dos outros parece sempre tão perfeita :)
Eliminarque se pode acrescentar ao que já foi dito?
ResponderEliminarque prosa boa, Manel. mesmo.
(e que saudades tinha eu da expressão "caga-tacos"!!!)
estive indeciso entre meia-leca e caga-tacos... acho que escolhi a melhor :)
EliminarEu quando casei também parecia uma marioneta adoentada e sem brilho nos olhos. Agora percebi que precisava de uma lupa...
ResponderEliminarMagnifica como sempre a tua escrita em tom de alma.
Saudades, beijos e abraços sem arames.:)))
nã me acredito numa única palavra :) tu uma marioneta? tu sem brilho? tolices :)
Eliminarbeijos, beijos :)
Fenrir?!?
ResponderEliminar:)
Fenrir, o lobo mau :)
EliminarHá outro, relacionado com o mesmo povo e que deu origem a essa mesma lenda! No entanto o significado do homem (lendário ou não) difere um bocado do lobo mau...
EliminarDaí a minha surpresa!
Já agora, excelente texto...
...desculpa não referir no comentário original, mas, por uma estranha coincidência tinha acabado de ler sobre Fenrir, relacionado com antigas lendas do dilúvio e do princípio dos tempos...
...cenas que não interessam a ninguém...
:)
:) nã gosto de repetir títulos e já tinha usado lobo... vermelho... etc
EliminarFenrir neste caso refere-se ao lobo gigante, filho de Loki, acorrentado pelos deuses... historinhas engraçadas :)
Sim, mas há um outro fenrir, que vem de lendas anteriores, que tem a ver com histórias do dilúvio...
Eliminar...um homem, obviamente!
:)
adorei.
ResponderEliminargracias :)
EliminarEste teu texto confirma o que eu já suspeitava há anos: a Capuchinho Vermelho é uma figura algo ambivalente. Desobediente e com um péssimo sentido de orientação (semelhante ao meu), acaba por fazer sempre más escolhas.
ResponderEliminarMas, sobretudo, confirma uma excelência literária, que, olha, clap-clap-clap!
:)
Tontinha! Desde que nã fiques com o lobo mau, todas as escolhas serão acertadas!
Eliminarbeijos e obrigado pelo clap-clap-clap!
Muito bom!
ResponderEliminarNem tudo é mau hoje.
Não é todos os dias que se encontra quem desenhe polvos.
Belo texto.
Obrigado.
Hei-de voltar.
pedi para desenhar raposas, mas já só havia os polvos... muito obrigado.
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