hétero

Apesar do meu ar sofisticado de calças rotas e barba de várias semanas, por dentro continuo a ser um individuo tosco e provinciano. É natural que engane algumas pessoas com este look de jagunço, mesmo amigos de longa data, mas eu não estava preparado para ouvir alguém se referir a mim como hétero.
Foi no seguimento de uma actividade ao ar livre organizada pelos colegas de trabalho, naquele longínquo tempo em que ainda tinha um emprego normal com colegas normais, ou quase normais, e algumas das colegas levaram maridos ou amigos para equilibrar o género durante as ditas actividades. Estava dependente de transportes públicos ou boleias para regressar a casa e uma das minhas colegas ofereceu-se para me levar, apesar do desvio de alguns quilómetros que o amigo (e vizinho) dela teria de fazer, morando eu no sentido oposto ao deles. Ele insistiu e eu aceitei. E na verdade ele era simpático, apesar de não o conhecer e de pouco termos falado durante o dia, mas até aquele momento não tinha pensado muito no fulano, nem se ele seria só vizinho da minha colega. É daquelas coisas que normalmente não me saltam de imediato. E entramos no carro, ele ia a conduzir, a minha colega ao lado, eu sem saber onde meter as pernas no lugar de trás. A conversa desviou-se para aparelhos nos dentes porque alguém tinha caído de cara na areia, com o dito aparelho nos dentes, terei dito qualquer coisa como: -Estive para usar em tempos. 
Ao que a minha colega disse: -Não precisas, porquê que havias de usar? E o vizinho dela respondeu por mim: -Ele tem um dente ligeiramente metido para dentro, antes do canino. 
Automaticamente concluí: “Este gajo é dentista” e então disse sem pensar, porque na realidade eu não penso muito: -É esse mesmo, mas a minha dentista disse que ficava sexy
Ao que o vizinho completou: -E fica, tens um sorriso muito sexy, foi a primeira coisa que reparei em ti.
 Nesse momento terei engolido em seco, se pudesse tinha engolido os dentes, mas ocorreu-me que ele estivesse na brincadeira, só que antes de conseguir verbalizar fosse o que fosse, a minha colega cortou a conversa com uma afirmação escabrosa sobre mim (como se eu não estivesse ali ao lado, encafuado no estreito banco traseiro):
-Já te disse que ele é hétero! Podes parar!

Nunca ninguém se tinha referido a mim por “hétero”, pelo menos na minha presença. Era estranho, foi estranho. Fiquei calado durante mais tempo do que é correctamente aceitável numa conversa, a processar o que acabara de ouvir. O vizinho não se sentiu ofendido, muito menos envergonhado, e prosseguiu: -Não me importo que ele seja hétero. Estamos num país livre, aparentemente. Não o estou a insultar.
-Mas estás a deixá-lo desconfortável. Rematou a minha colega. Era altura de eu dizer alguma coisa, mas nada me tinha preparado para aquela situação. Estaria vermelho como um pimento quando ele olhou pelo espelho retrovisor e pediu desculpas.
Caraças, havia mulheres que literalmente mudavam a língua delas para dentro da minha boca e nunca tinham reparado que eu tinha um dente torto. Com excepção da dentista, que realmente tinha-me convencido com a teoria do sorriso sexy
Ainda faltavam alguns quilómetros para chegar a casa, mas eu tinha vontade de sair em andamento, nem que partisse os dentes todos. Mas que desconforto era aquele? Seria vergonha? Umas horas antes não teria qualquer problema em falar com aquele sujeito e agora mal o enfrentava. Não conseguiar deixar de associar a sua preferência sexual da pessoa que ele era.
O ambiente ficou pesado. Tentei justificar-me com o meu provincianismo, não conseguia entender o que mais me aborrecia, se era a atitude homofóbica que eu sempre negara, ou se era o rótulo “hétero” que me acabavam de colocar. Não é bonito colocar rótulos em pessoas.


Voltamos a falar, talvez uns meses depois do "incidente". Encontrei-o na rua, acho que ele já me tinha visto, mas fez de conta. Enchi-me de coragem e convidei para irmos tomar um café. Contei-lhe o meu choque perante a palavra “hétero” e da minha costela homofóbica, ele riu. Falamos de livros, filmes, séries, evitamos falar de dentes. Deixou de ter qualquer interesse por mim quando lhe disse que adormeci no primeiro episódio da Guerra dos Tronos. 

Curta-metragem Stop Calling Me Honey Bunny (clicar no nome para ir ao filme)

Comentários

  1. :)))

    Mas afinal o sorriso é sexy? Isso é o que realmente interessa desta história toda.

    Não falo mais contigo se não gostas da guerra dos tronos!

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    1. claro que nã, a dentista é que me quer convencer disso...
      se todas as pessoas que me dizem isso da guerra dos tronos deixassem mesmo de falar comigo, ficava limitado a uma ou duas pessoas com quem conversar :D

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  2. tanta conversa para nos dizeres que és grande e tens um sorriso sexy... francamente heteroTrovisco...
    (adormeceste? credo... eu nunca vi...)

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    1. nã tenho um sorriso sexy... foi a dentista que resolveu inventar essa teoria... francamente maresia, se nã queres conversa, vai ver a guerra dos tronos :D

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    2. vou nada. vi o honey bunny...:) guerra dos tronos, para quê?
      obrigada Maunuel, muito muito bom :)

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    3. tá muito bom :) ainda bem que gostaste, pensei que ninguém ia ver :P

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  3. Seu "hetero"!!! Acho que é uma questão cultural. Em tempos, também fiquei constrangida com os avanços de uma mulher...

    Beijocas, polvo do sorriso sexy :)

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    1. tentei contar isto sem a parte do sorriso sexy mas nã resultava... agora durante três dias vou ter de ouvir essa :)
      beijos Tutu!

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  4. Hummmm... hetero soa-me bem. Cada um é o que é, e a preferência sexual nunca define ninguém, mas a verdade é que um comentário ou elogio de alguém que não joga na mesma equipa nos deixa assim um pouco desconfortáveis. Já me aconteceu...por isso sei do que falas.

    Sabemos que não quer dizer nada e que somos crescidinhos e só vamos para onde quisermos ir, mas mesmo assim a coisa fica estranha.

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    1. foi realmente estranho, achava que se me acontecesse saberia como lidar com a situação, mas na altura fiquei estúpido... os tempos são de modernidade, é preciso adaptação :) beijos AC

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  5. Manel, mesmo que o teu sorriso não seja sexy e que tu não sejas alto, boa onda tipo boa pessoa disso eu tenho a certeza que és. Isso é que interessa.
    Acho que faz sentido o teu conforto perante o rótulo.Seja esse ou qualquer outro. Também não gostaria nada de ouvir. Os rótulos nas pessoas têm sempre algo de violento, nem que seja subliminar.
    Manel, e este teu texto está tão, tão, bom. :)

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  6. Sabes, independentemente das preferências sexuais, o importante é saber respeitar o espaço do outro. Recordo-me de ter uma queda pela minha chefe quando trabalhava no call center. Uma mulher lindíssima. Cerca de 15 anos mais velha. Casada, também. E quando ela colocava o batom vermelho nos lábios, cuidado... Olhar para ela era um perigo. :) E sabes tínhamos uma relação maravilhosa (ela sabia que eu gostava de mulheres). E eu adorava a sua personalidade. Não lhe falei da minha atracção, mas acredito que desconfiasse. Nunca provoquei nenhum mal-estar entre nós as duas. Sempre houve imenso respeito.

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    1. isto pode ser preconceito da minha parte, mas acho que entre mulheres conseguem gerir melhor este tipo de situações, até porque são mais sensíveis, não? apercebem-se com mais facilidade... e nã ficam com vontade de partir dentes :)

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  7. O meu afilhado enrascado ahahahahaha
    Também, porque é que a tua colega teve de dar uma de intelectual? Não podia simplesmente ter dito, ao vizino: - Ópá ele não é maricas - ponto final.
    Tenho a certeza que terias conseguido driblar a coisa na maior eheheh

    Beijo em Tu afilhado tentacular de sorriso maroto. Sexy? ah ok! de sorriso sexy, tábem assim?

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    1. maricas nã se usa :) é feio, e eu concordo.
      E não, o sorriso é normal... ponto final :)

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    2. Caramba pá! Também ficas desconfortável por teres um sorriso catitamente sexy?

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    3. claro que sim... quero que gostem de mim pelo que sou, nã pelo sorriso sexy, ou pelo meu iate, a minha mansão na praia :)

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    4. Ai afilhado, não devias ter dito nada disso, agora vão ser como moscas. Vão cair de todos os lados, até da revista Maria. Fora isso, as que gostávamos de ti mesmo antes de vires práqui dizer o que tens, continuaremos igualzinho ao que sempre fomos - gostamos de ti como fores e com o sorriso sexy :))

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  8. uma vez, há muitas, muitas noites, eu e um amigo dançamos a noite toda com um grupo de raparigas, num bar da capital. o meu amigo passou a noite inteira a tentar afiambrar-se a uma das moças, lindíssima, e eu lá ia com ele, "encostar-me" ao grupo a dançar. no final da noite, ele ainda não tinha o nº dela, mas já conversavam de copo na mão, fui ao wc. ela foi também. (eu estava, como dizer?... um pouquinho quente já :) avançou para cima de mim, começou a apalpar-me toda e a beijar-me. eu, não sei se dos copos, se da estupefacção, só consegui reagir alguns minutos depois. foi dos momentos mais bizarros da minha vida.
    quando voltei para junto dele, azoada das ideias, ele só me perguntava se eu tinha conseguido o nº dela...

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    1. nem imaginas como estou feliz por ter escrito... e tu teres escrito... e prontos, tou ainda a processar o que acabei de ler... banho de água fria espera-me...

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  9. Compreendo-te em relação à Guerra dos tronos!
    E também percebo perfeitamente o teu desconforto! EE não creio que tenha nada de homofóbico...
    ...só mesmo de inusitado...

    :)

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    1. haja alguém que me entenda... :) muito agradecido! mesmo...

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  10. Sou moça de ter tido poucos homens. E dois deles (quase todos, portanto) tinham (e ainda têm) um dente rebelde ali pelo meio. E sempre achei atraente. Para eles é um defeito (um deles até pensou em usar aparelho, eu é que não deixei), para mim é uma diferença apelativa.
    Mas se o teu mal se nota, não tem piada, Manel.
    ;p

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