tâmara
…ou uma improvável história de
amor cortada em postas.
A directora da escola esticava o
mais que podia o seu minúsculo pescoço pela porta entreaberta. Em contraste, o
encarregado da obra não tirava os olhos dos pés; primeiro os da directora da
escola cuja voz estridente lembrava giz a arranhar ardósia, depois para os teus.
É lamentável que não me lembre dos teus pés naquele dia. Seguravas a porta de
costas para nós, mantendo-nos aos três seguros do resto do mundo naquele minúsculo
gabinete: o polícia fardado que não sabia inglês, a quem denominarei de: o teu "cão de fila"; Henri o electricista francês
e tradutor pouco credível; e eu, o presumível culpado. Henri reconheceu-te, mesmo
de costas, tinha um sorriso aparvalhado e gaguejava a letra de uma música:
"En oubliant ta cruelle froideur
Les mains pleines d'amour,..."
Fechaste a porta na cara da directora da escola abafando os seus agudos, e do
encarregado da obra que terá ficado a olhar para o sítio onde antes estavam os
teus pés, e cheia de determinação e o cabelo apanhado no topo da nuca, avançaste
para nós. Henri levantou-se da cadeira como se um choque de 220 volts lhe
tivesse percorrido o corpo e saudou-te com um mademoiselle, mas antes de
conseguir dizer o teu nome, já lhe cortavas a garganta com um único golpe do teu olhar
gélido.
Os teus olhos passariam rápidos
por mim como pequenos bicos-de-lacre, e cairiam como uma maldição sobre o teu fiel "cão de fila" fardado que se
aninhava o mais que podia na cadeira, e sem te encarar saiu da sala levando o
tradutor não oficial e electricista de profissão com ele. Respiraste fundo,
lembro-me, e ocupaste o lugar à minha frente, com
uma pequena secretária de permeio, o teu perfume a dar-me tusa, o teu rosto
oval perfeito a blindar-me o juízo. Por pouco não me entreguei.
Estavas tão
séria. Remexeste nos papéis que trazias, suponho que davas tempo para que o feitiço
fizesse efeito, imaginava quantos não se teriam declarado culpados, só por estarem ali diante de ti,
sem brilhos ou pinturas, um fato simples, cabelo apanhado, olhos imensos
e tristes, avassaladores, como duas ondas gigantes prestes a engolirem-me. Mantive
a boca fechada, o coração atravessado no esófago espirrava sangue pelas veias
esticadas. Se falasse, diria que te amava, ou algo mais precipitado. Sentiste o
cheiro, o sangue a encher-me a boca, o sabor adocicado e metálico, engoli e
continuaste com a tortura, agora o teu nome, que ficou amarrado à minha
língua, contorcida para o tentar no espaço contiguo e seco da boca, queria gritá-lo,
repeti-lo até esgotar as forças. Mas calei-me, fiquei quieto, paralisado, seguindo os teus lábios desenharem palavras no ar, interrogações, declinações, pausas,
uma pausa mais longa que as restantes e então bramiste, e o teu punho bateu com
força sobre a secretária que saltou do sítio por ser ligeiramente manca, e
despertei do estado semicomatoso e disse que te entendia, que estava apenas um pouco
cansado. E repetiste o que já sabia, não me importava de te ouvir durante todas as horas que me restavam de vida, podias repetir infinitamente que duas malas tinham sido subtraídas de uma
sala no edifício contíguo, foram por sua vez encontradas subtraídas de todo o
dinheiro numa casa de banho do edifício onde estávamos. Havia quem afirmasse
que me tinha visto na passagem que ligava os dois edifícios, a descrição era perfeita: pele com manchas, oito patas e um colete reflector.
Era verdade,
tinha estado no outro edifício, já dera ao teu “cão de fila” a mesma
história, tinha ido à casa de banho e ao sair perdi-me e fui dar ao outro
lado. Mas a expressão dos teus olhos não se aligeirava, estavas mais que
acostumada à mentira, embora ela não fosse inteira. Mas como dizer-te que tinha
estado a ver os pássaros, sem que o coração me saltasse da boca?
ici |
Lindo, Manel!!!
ResponderEliminarBeijocas :)
o texto, presumo :) obrigado e beijos, muitos.
EliminarO texto, sim, porque a foto de perfil é um cadito estranha!! :p
EliminarAlém de polvo poeta, temos um polvo romântico :)
ResponderEliminarDevias ter dito ... as mulheres impressionam-se por homens que reparam em pássaros :)
:) podia ter dito, sim, porque vou acabar por dizer coisas mais estranhas...
Eliminarfizeste bem em não dizer. ver pássaros não é próprio de gente decente e séria.
ResponderEliminarestou a rir alto... nunca me chamaram indecente desse jeito :)
Eliminaraqui estou eu a olhar para eles, trovisco...três pardais e duas pardalas :)
Eliminaragora mais de dez...
Eliminarsua indecente e pouco séria pessoa :D
Eliminartshciiii... nunca tinha sido insultada por um polvo esbugalhado...
EliminarBelo, Manel!
ResponderEliminarE ali o "estavas tão séria", ao mesmo tempo impõe um ponto de ordem e maior doçura à história.
Um dia destes ainda escreves um romance. :)
obrigado Isabel, fico sem jeito :)
EliminarUma história doce como a tâmara :)
ResponderEliminarDespeço-me com uma vénia :)
muito agradecido Miss Smile, a tâmara entra no próximo episódio... :)
EliminarTâmaras... Se enroladas em tiras de toucinho fumado bem fininhas e levadas ao forno, perdem o nome para bem casados ehehehehh
ResponderEliminarPolvo? Explica-me lá isso afilhado :)
que delícia :)
Eliminarpolvo... polvo... sem espinhas! nã sei de onde veio, mas ficou, o polvo :)
Agridoce como a tâmara.Atenção à hipertensão que a dita pode provocar quando ingerida em excesso!:))
ResponderEliminarnã será pra corações fracos :)
Eliminartâmara em inglês é encontro e em árabe dedos de luz, em que ficamos?
ResponderEliminardedos de luz é perfeito :) já explico a tâmara... dentro de momentos... talvez amanhã...
EliminarOito patas?
ResponderEliminaré que sou um polvo, pelo menos até à primavera...
EliminarAh! Claro!
EliminarTão óbvio e eu não vi. :)
És uma caixinha de surpresas :) gostei de saber. Manda lá outra posta, a tal onde entra a tâmara :)
ResponderEliminarvai ser uma desilusão... :)
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