ípsilon
Abriu a porta do quarto e tacteou
ao longo da parede, a luz do tecto estava fundida. Havia um pequeno candeeiro
na secretária, apontei-lhe e ela acendeu-o. Não entrei, fiquei no corredor
alcatifado a púrpura. Cheirava a mofo, a velho. Queria sair dali, voltar à
chuva, caminhar pela noite em direcção contrária.
-Cozy! Saiu-me, enquanto a
rapariga pendurava o casaco molhado nas costas da cadeira. Ela riu da minha
mentira piedosa e queixou-se do cheiro. Havia uma janela interior quase junto
ao tecto por cima da cama, dava para o vão das escadas. Senti pena dela, mas
não podia fazer mais nada, desejei-lhe boa noite e desci sozinho.
Tinha-a visto uma vez, duas no
máximo, no apartamento de Alicja. Ela reconheceu-me, estava diante da minha
última cerveja, prestes a regressar a casa quando me abordou. Notava-se que
alguma coisa a perturbava, primeiro pensei que me ia pedir dinheiro, mas depois
começou a falar do apartamento, como tinha sido posta fora por um motivo
qualquer que não cheguei a entender, e entretanto conseguira um quarto, coisa
provisória, pagara adiantado, tinha as chaves como garantia, mas agora que lá
voltara não conseguia entrar. O receio dela é que tivessem mudado a fechadura. Perguntei
aquelas coisas óbvias que nos ocorrem de imediato. Já tinha tentado ligar ao
proprietário da casa, mas sem resposta. Tinha visto o anúncio numa rede social,
parecia coisa séria segundo ela, mas sem recibos, sem documentos. Comecei logo a perspectivar o pior, não me
apetecia passar o resto da noite na esquadra, muito menos cair numa cilada
qualquer, mas o meu juízo não votava e propus ir até lá com ela e tentar abrir a porta. Ela agradeceu e
entramos na chuva.
Acendeu um cigarro antes de
perguntar se me importava, era perto, esforçava-se por acompanhar o passo.
Viramos duas ruas, perguntei pelas coisas delas, já que não trazia nada,
nem uma carteira ou um guarda-chuva, só o cigarro que se extinguia rápido nos dedos. Estava tudo no carro de uma amiga, mas essa por algum motivo também
não podia ir ter com ela. Quase a chorar, maldizia a sua sorte, “i have no luck”
repetia no fim de cada frase. Mais duas ruas, cortamos à esquerda.
A certa altura pensei que podia
acabar numa banheira cheia de gelo e um ou vários órgãos a menos, mas deve
haver no código um gene ípsilon que torna irresistível o salvamento de donzelas
em apuros, e sem corcel lá fui eu. Era uma rua estreita, mal iluminada, de
prédios velhos e cinzentos. Já teria por ali passado algumas vezes sem prestar
grande atenção. As portas eram idênticas, substituídas no século passado, os
números confundiam-se, mas ela jurava que era o 121. Experimentei a mais
pequena das duas chaves, nem sequer pertencia aquela fechadura. Era pouco
provável que tivessem mudado o ferrolho da rua, o prédio do lado era o 127, a
chave entrou e rodei para a direita e depois experimentei para a esquerda, até
a porta abrir com alguma resistência.
O resto já se sabe, subi atrás dela só
para garantir que a chave do quarto funcionava. Tirou o casaco, mantive a
armadura e a viseira descida, a pingar na alcatifa.
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Um verdadeiro gentleman :)
ResponderEliminarBonito, gesto :)
é um aborrecimento, de armadura à chuva, aquilo nã é estanque...
EliminarAfilhado, afilhado, tu livra-te de te meteres em apuros, se morres por aí, juro, que te mato.
ResponderEliminarAbreijo da madrinha
quem falou em morrer? desconfio que aquela casa nem tinha banheira... o que me tranquiliza bastante!
Eliminarbeijos, madrinha :)
Conde, como é que adivinhou que eu ia ler o texto a partir do rés-do-chão do nº127?
ResponderEliminarDepois foi só descer, e fechar a porta. Mais uma cenoura.:)
nobre que se preze adivinha até quando uma donzela está prestes a suspirar :)
Eliminarmuito agradecido!
Manuel!!!!! e se te levam algum órgão que te faça falta?... esse ipsilon não é de confiança... tem cuidado!
ResponderEliminartenho um órgão extra para estas eventualidades :) algumas teclas já não funcionam, mas ainda dá para pequenas composições...
Eliminarbrinco contigo, mas eu faria igual...tal e qual...
EliminarTem piada teres escolhido esta palavra para título...
ResponderEliminarquando começo a esgotar as palavras, viro-me para as letras :)
Eliminar... ah, e gostei tanto deste conto, Manel!
ResponderEliminarmuito agradecido
EliminarUm homem sabe sempre ser um homem e um cavalheiro! :)
ResponderEliminar(foi um comentário sexista, mas foi o que se pôde arranjar)
:) podia ser pior!
EliminarMas que caval(h)eiro! :)
ResponderEliminarsem cavalo... ao preço do feno, mais vale sustentar um burro, e burro já sou eu!
EliminarE a espada? Onde ficou a espada?
ResponderEliminarBeijocas, Dom Stormy :)
a espada nã saiu da bainha... nos dias que correm é preciso ter cuidado :)
Eliminarbeijos, Dona Maria Tutu
Um cavalheiro! E nem precisasse usar a espada...
ResponderEliminartás de férias? recebeste algum suborno? :)
EliminarExcelente :)
ResponderEliminarHá coisas que, não tendo preço, valem muito!
Um beijinho
às vezes fico a pensar se isto nã será castigo...
Eliminarcomo dizemos no Norte, um sinhôre.
ResponderEliminarnem tanto :)
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