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Na monumental sala dos troféus de falhanços, com as suas paredes de três metros onde se amontoavam em cristaleiras o espólio de fiascos, havia ali um pouco de tudo cuidadosamente exposto, não fosse cair no vácuo do esquecimento. Taças douradas e prateadas, umas asadas outras compridas, “pior defesa central” gravado a azul, “péssimas notas a francês” em letra pequena. No outro extremo medalhas engalanadas com coloridas fitas em requintados estojos de veludo, uma das maiores “mérito por tempo desperdiçado”, numa pastilha barata de alumínio “promissor arroz de tomate queimado”. Na parede mais longa exibiam-se os troféus em acrílico em forma de telhas, bicicletas, motas, escadotes e escadas na categoria de “honras distintas por tralhos”, ou em forma de sanitas, quase uma por ano, destoando em tamanho “pior ressaca 2013”. Por cima da porta de entrada, havia uma sucessão de cabeças em resina montadas em tabuletas envernizadas onde se podia ler o nome do espécime. O detalhe era grande, ligeiros cortes, narizes desviados, derrames oculares, gotas de sangue a aflorar nas narinas, em comum tinham vitórias, na parede conhecida como “as idas ao tapete”.
Em destaque no centro da sala, iluminado por várias tiras de leds, um expositor em plexiglass no topo de uma coluna romana, encerrava uma flecha de ponta afiada em forma de coração. Ela representaria a malograda tentativa de tomar o lugar de Cupido, de arco e aljava cheia ao ombro, o maior falhanço de todos, aquele de que mais se arrependia.

Num banner lateral anunciava 10% de desconto na subscrição online do pacote “Deus greco-romano por vinte dias”, que incluía seguro, kit básico e asas nas modalidades Eros, Tânato ou Hipnos. Quatro semanas depois recebia em casa duas caixas de cartão seladas com várias camadas de fita adesiva e logogramas de aviso em chinês. As asas eram réplicas toscas em papelão, mas o arco e as flechas pareciam genuínos, assinadas junto às rémiges pelo próprio Cupido. O software fornecido era user-friendly, as flechas possuíam um chip bluethooth activado pelo telemóvel, bastava aproximar o suficiente do dispositivo da vítima e acertar com a flecha na sua futura cara-metade.
O plano estava em vias de ser executado, acomodou a aljava e o arco por baixo de uma gabardine comprida, estavam trinta graus e o suor escorria-lhe em bica. Tinha marcado encontro com as duas cobaias nas ruínas do fórum, procurou a sombra de uma coluna de Saturno enquanto distraia as vistas num grupo de turistas eslavas. Sentia-se muito bem no papel de um deus, mesmo que só por vinte dias, se realmente as flechas funcionassem, podia emparelhar uma data de gente. Envolto numa espessa nuvem de pensamentos diuréticos, não se apercebeu da chegada do amigo que o mirava com estranheza, achando que o caso era sério e sujeito a medicação.
-Dá-me o teu telemóvel. Pediu o aspirante a Cupido, vá, rápido antes que ela chegue.
-Que se passa contigo? Está um calor de morrer e tu estás de gabardine até aos pés. Tens manchas de suor do tamanho de bolas de futebol debaixo dos braços.
-Isso agora não interessa, dá-me o teu telemóvel, depois explico-te tudo… vais ver que é desta, tenho cá um feeling…
O amigo que era mesmo muito amigo não discutiu e confiou no pouco juízo do aprendiz de deus a vinte dias. A flecha estava pronta, só faltava a última parte, o “grand finale”.
-Achas mesmo que ela vai aparecer? Não é um sítio um pouco estranho para marcar um encontro? E isto hoje tá apinhado de gente, achas que ela te reconhece? Pareces o inspector Clouseau…
-Cala-te pá, vou ligar-lhe, és capaz de ter razão, não foi o melhor sítio mas precisava de campo aberto, não ia disparar uma flecha no meio de uma esplanada no centro.
-Uma quê? Disparar onde?
-Tou? Se calhar já passaste por nós mas não me reconheceste… junto ao templo de Saturno… esse mesmo, sim estou com uma gabardine… é, ao vivo sou mais distinto, é o que dizem… vá.
Ela já ai vem, passou por nós duas vezes, chega-te pra lá, não quero apanhar-te.
-Tás bem? Se calhar apanhaste muito sol…


Mas o incipiente deus já não ouvia, concentrado na imagem felina que desfilava na sua direcção, desfez-se da gabardine e de arco em punho, apontou a flecha. Era agora ou nunca, pensou, uma aberta à sua frente, sem brisa nem correnteza, esticou ao máximo a corda e disparou. Assim que a ponta fria tocou no coração da mulher, ela sentiu o chão sumir-se-lhe dos pés, cambaleou, olhando incrédula para o seu atacante, com a flecha cravada cinco centímetros no peito. Ele também estava incrédulo, hipnotizado, amaldiçoado, e sentia a mesma pontada, a mesma falência, a garganta ressequida, estava apaixonado. O amigo desmaiara aos pés do templo, ao ver tanto sangue, fraquejara nas tensões. Nenhum dos dois lhe valeu, mas continuaram amigos, ainda hoje são. 

John William Godward,Mischief and Repose (detail)1895

Comentários

  1. Malogrados esses 20 dias no papel do um deus.
    Mas nada nem ninguém o demoveria de cumprir esse devir!
    Beijo Manel:)))

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    1. Pensava ele que seria por uma boa causa... porque pensamos tanto? beijos beijos menina das navalhas

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    2. Eu tento já nã pensar.
      Saiem-me os planos todos rotos, cheios de espaço vazio!
      Agora no treino das navalhas e dos alongamentos ainda penso menos.
      Beijo, beijo e beijo e que o deus do sono te acompanhe e a mim também.:))

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    3. nã pensar era bom... mas gostava muito de ver esses alongamentos, gostava mesmo...

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  2. O Eros de Caravaggio, o quadro, tem as unhas dos pés sujas. Achei que gostarias desta informação.

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    1. :) tu já me vais conhecendo... a escolha da imagem foi bastante complicada e acabei por deixar de lado os deuses quando me deparei com o neoclassicismo de John William Godward. Para feio e sujo já basto eu :)

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  3. Não percebi se a flecha matou a menina :) ou esta apenas se apaixonou :) , no meu ponto de vista dá para os dois lados. pode ser um final em aberto, cada leitor faz a leitura que entende :)

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    1. :) nã ia terminar assim, mas depois achei que estava demasiado longo e cansado entreguei a pena! mais valia que tivesse morrido, mas cada leitor deve fazer a sua leitura, pois qual seria a piada de escrever se todos fossem concluir exactamente o mesmo?

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  4. Vou adoptar a versão mais romântica da coisa, a menina apaixonou-se dada as capacidades da seta de grande tecnologia :)

    Gosto de finais abertos :)

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    1. nã queres reconsiderar a hipótese de permitir comentários lá no quarto andar?

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  5. O que eu lamento mesmo é a ressaca de 2013 .... porque de resto, tudo faz parte da vida.
    A pior ressaca é sempre de lamentar. :))
    Dias melhores virão, senhor Manel, haja fôlego. :)

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    1. infelizmente há arrependimentos maiores... mas melhores dias, melhores dias... beijos Flor

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  6. Maiores??? quê, 3 ou 4 metros? :)
    Senhor Manel, todo e qualquer arrependimento convém ir para a liquidificador... o cerebelo quere-se o mais limpo e arrumado possível. :)

    Boa semana, senhor Manel,
    Bêjinhos

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    1. uns 40 metros, mas mais de metade já evaporou :)
      esse senhor antes do meu nome é demasiado distinto, a Flor acha que o mereço? :) Boa semana, beijos

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  7. Se eu assim o trato, é porque merece, até porque eu gosto dos pontos nos is :)) .... depois há aquela máxima ... só temos o que merecemos.
    Claro que, quando acontecem coisas ruins .... ninguém merece! :)
    Ainda bem que evaporou, e o restante arrependimento também vai evaporar.
    Eu uso o liquidificador para os arrependimentos e funciona. Nada de tormentos. :)
    Bom dia senhor Manel,
    Beijinhos

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    1. bom dia Menina Flor, do monte, era o alecrim?

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    2. Não, senhor Manel, era hortelã! :)

      Boa noite senhor Manel, bom descanso.

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