hereditário
Antes de adormecer na fatídica noite de treze de novembro,
escrevi um parágrafo sarcástico a respeito da triste situação política que se vive no meu
país:
Não fui talhado para isto, lamento. Resolvam da melhor maneira possível,
mas não contem comigo, isto é uma coisa que salta gerações na minha família, é
suposto saltar comigo.
Ontem fiquei a pensar no que tinha escrito, imóvel perante o
vazio que enchia o resto da página. O que fazemos quando o mundo parece regredir e não conseguimos, nem queremos, acompanhar? Depois o meu irmão ligou-me, os miúdos
queriam falar comigo, saber se estava bem e antes de desligar a pequena
perguntou: tio, como são os maus?
Não fui talhado para isto, a minha mãe não me preparou para
a guerra. Posso parecer grande e capaz de desfazer queixos e narizes, mas
adormeci com histórias sobre porcos e gatos com botas. As paredes de casa eram
forradas com fotos felizes das férias e litografias de Van Gogh e Gauguin. As
estantes de livros enchiam o corredor e no gira-discos havia sempre um vinil do
Zeca ou do Fausto, a filarmónica de Berlim. Ao domingo a minha mãe fazia um
bolo e rapávamos a tigela da massa crua. Havia mantas e tendas de lençol, legos
e carros de corrida. Havia a rua, os torneios sem bola, os piões e as
faniqueiras, a chuva e a lama, as lanças e os escudos de papelão. Depois veio o
grunge, as miúdas, cigarros avulsos e o cabelo na frente dos olhos. Quando me
apresentei no quartel, os gajos leram alto o meu nome e passaram-me à reserva. O
meu coração é feito de gelatina, de morango, quando a minha sobrinha diz tio,
ele desfaz-se.
Como se explica a uma criança como são os "maus" sem usar palavrões? Cortei daqui a explicação de vinte e cinco linhas sobre como são os maus... um dia quando não tiver mais nada de interessante para escrever, eu volto aos maus. À minha sobrinha menti, disse que eram verdes raiados por fora, tipo as melancias e cheiravam a brócolos cozidos. Ela sorriu. Aquele sorriso um dia há-de ser a desgraça de muitos.
Mas enquanto ela não cresce e se torna a próxima Petra Herrera ou Constance Markievicz , os genes revolucionários foram-me entregues. Sou de natureza pacificadora, já expliquei que não fui feito para guerras, mas sei que debaixo da avermelhada gelatina há uma fina camada negra de pólvora, ela inflama com facilidade e quando explode, faz estragos.
gas-grenade-turned-flower-pots |
Tão bonito o teu texto. Fez-me sorrir. Vivemos tempos de tanta volência gratuita, tudo vale...
ResponderEliminarobrigado, fico feliz com o teu sorriso...
Eliminarcomo te compreendo :)
ResponderEliminarbolo de laranja continua a ser o meu preferido... :)
EliminarMaravilha de ciganice.
ResponderEliminarA minha solução para essa incapacidade continua a ser viver dentro dos versos. O problema, claro, é se me explodem os livros.
quanto tempo de pode viver assim?
EliminarMuito.
EliminarPenso que a pergunta certa é se é eticamente aceitável.
se nã for, atão é isso que quero :D
EliminarManelito, que dizer!
ResponderEliminarGostei para lá de muito da tua reflexão. E gosto muito de ti :)
Bem hajas, Manelito.
obrigado Sandra, beijo beijo beijo
EliminarEu sempre soube, que para lá da aparência (pintada por ti) tu, meu afilhado, eras algo entre o arroz doce e a mousse de chocolate, afinal és gelatina, tanto faz, és mais um a quem chamo de (o meu herói) O que fazer com este mundo a cada dia mais estranho... Não sei, eu que pouco sabia, agora, vou sabendo cada vez menos, e abrindo os olhos perplexa, sem entender.
ResponderEliminartambém nã te sei dizer, mas eu vivo e deixo viver... e salivo também, a pensar em arroz doce e mousse de chocolate... :)
EliminarBoa reflexão, Manel.
ResponderEliminarApesar de tudo não consigo dividir o mundo em maus e em bons. Há uma panóplia de gradações.
Bonita foto.
Boa semana!
bicho estranho, com bom e mau nas veias... boa semana Isabel.
Eliminarnuvens belas carregam tempestades
ResponderEliminarpurtroppo è vero...
EliminarVale sempre a pena vir aqui ler o que escreves. Parabéns :)
ResponderEliminarObrigado Imprópria, ando meio perdido lá pela tua imprensa, mas eu atino... :)
EliminarNem todos culpados, nem todos inocentes !!
ResponderEliminar:)))
cuidado com os que cheiram a brócolos cozidos... :)
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