Bíró



Irritado, atirou com o caderno que embateu na parede mais distante, caindo aberto no chão, precisamente na página em que escrevera “Na comissura do lábio”… encostado à segunda linha esverdeada, no início do canto superior esquerdo, e nada mais que isso. O homem que vivia na sala das cavidades futuras aproximou-se, não reconhecia o caderno fendido, apenas a caligrafia ágil em azul. Rodou a cabeça para conseguir ler sem lhe pegar “Na comissura do lábio”… lembrava-se deste início desgastado, no poder alojado naquelas duas preposições com determinantes, e dois substantivos à solta, vazios de significado na sua solidão. Distraído, pegou no caderno e analisou a encadernação simples, com dois emes pequenos gravados no verso, provando que lhe pertencia mas não se lembrava de alguma vez o ter visto. 

O homem que escreve tinha saído, exasperado batera com a porta. Encostou o caderno ao nariz e aspirou o cheiro a couro. Era demasiado requintado, certamente tinha sido um presente, alguma admiradora, ou um furto bem-sucedido. Folheou o papel pautado coberto de vocábulos e deteve-se na página incompleta, havia ali uma continuação, aquela frase ligava-se pela boca a um corpo. Procurou a esferográfica azul na mesa e sentou-se no lugar do homem que escreve, inspirou fundo e quando se preparava para dar continuidade, a tinta secara. Carregou com força na segunda linha, após o “lábio”, mas a caneta não lhe respondia, deixando apenas uma marca na folha. Impaciente agitou com vigor a caneta para cima e para baixo, várias vezes, mas da esfera só conseguia riscos e mais riscos, sem vestígios de tinta. Até que os riscos comeram a superfície frágil e penetravam nas páginas seguintes, continuados, agredindo as linhas, sem indícios de azul formaram sulcos grotescos. Uma força destrutiva possuíra o homem que vivia na sala das cavidades futuras, irritado, lançou o caderno pelo ar que embateu na mesma parede, caindo aberto precisamente na mesma página onde dificilmente se podia ler “Na comissura do lábio”. 

O homem que escreve voltava, a chave rodava na iminência da fechadura, ele não o conseguiria ver porque pertenciam a diferentes dimensões, mas os estragos no caderno eram irreparáveis. Levantou-se da cadeira onde o homem que escreve se sentava e em quatro passadas alcançou o caderno, regressando à cavidade aberta no tecto em outras tantas passadas, largando no interior do cilindro negro o caderno de capa em couro que se esfumou num outro futuro. 

O homem que vivia na sala das cavidades futuras estava mais calmo, suspenso no tecto como um lustre, esperava que o homem que escreve entrasse na sala a qualquer momento. Ouviu-o arrumar dois sacos de compras, distribuindo enlatados e pequenos volumes entre o frigorífico e uma prateleira da despensa, depois entrou na sala, sentou-se à mesa onde costumava escrever e desatarraxou a esferográfica azul em duas partes, trocando a recarga vazia por uma nova que trazia consigo.
László József Bíró foi um inventor húngaro naturalizado argentino. Apresentou a sua primeira versão da caneta esferográfica na Feira Internacional de Budapeste em 1931 .




Juan Francisco Casas gasta cerca de 14 canetas Bic por quadro, com estilo realista e ângulos diferentes lembrando uma fotografia com dois metros quadrados.

Comentários

  1. Ler-te sempre me surpreende, e isso, só conseguem os homens que sabem escrever.
    Gosto desse homem que escreve e, do outro, aquele que não esconde as suas fragilidades, também.
    É dessa estirpe, que se fazem os escritores, os jamais confundidos com juntadores de palavras que, numa métrica irreprensivel são, falhos de vida, incapazes de levarem o leitor consigo, de fazê-lo sentir a tristeza em que se move, a raiva em que se debate, a doçura do aceitar, sem com isso, perder de vista o amanhã e no hoje, ir comprar cargas para a esferógrafica...
    Permite-me comprar-te num escaparate

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