metamórfico
Como se chama o maldito do cão? Pensei, enquanto o via descer pela rua numa correria insana, apavorando os transeuntes de caraças esquálidas. Acho que era a primeira vez que tinha de o chamar, nunca antes surgira aquele pastor-alemão de juba reluzente muito farta pelo lombo. Então atirei um nome antes que o perdesse de vista. Leon, gritei, como se fosse íntimo com o escritor russo, e o encontrasse por mero acaso longe de Astapovo. O cão derrapou no passeio, fincou as orelhas espertas no ar e rápido como um raio inverteu a marcha, correndo como um doido com a língua ao dependuro na minha direcção, quase deixando-me no chão com a força do reencontro.
Só hoje reparei que nos sonhos as esquinas cruzam ruas que nunca se encontraram. Aquela que descia parecia Pinto Bessa, larga e cinzenta na sua promiscuidade, desaguando desinteressante na estação de Campanhã. A outra que lhe dava esquina parecia a travessa de S. Brás, estreita deitada à sombra de um muro morto, que na verdade faz esquina noutra parte da cidade com a Antero de Quental que desce abrupta, rematada no largo da Igreja da Lapa.
Lá o chamei e dobramos a esquina que não cruzava com a rua certa e senti que fazia falta uma trela. Era obediente o canídeo, mas precisava de ir a uma loja não sei de quê, que perdera entretanto todo o interesse porque não tinha como o segurar. E era grande, como um lobo. Mas afinal já não morava ali perto, ainda tínhamos muitas ruas para atravessar e em cada uma voltava o receio de que algo de mal lhe pudesse acontecer.
Procurei o caminho mais curto, acelerando a passada, e em cada esquina despontava uma rua aleatória, mas eu seguia convicto. Perdi-o de vista por breves segundos na reentrância de um prédio. Leon, gritei duas vezes, e ele surgiu transformado num grande penacho de dente-de-leão, pairando na brisa amena à espera que o alcançasse. As cípselas compostas por pêlos finos estavam húmidas, esquecerá por completo que quando se molhava no dorso transformava-se num outro ser. Sequei-o com cuidado, patas articuladas tomavam o lugar das sementes, e de um tronco minúsculo surgiam duas esferas muito negras que me olhavam com a mesma dedicação.
Agora cabia num bolso, fiquei mais tranquilo e pensei voltar à tal loja ou então procurar uma paragem de autocarro e regressar a casa com o estimado metamórfico. As camélias já estavam floridas, e o cão seco passeava feliz pelas minhas costas na forma de um aracnídeo pernilongo. Mal o sinto, até que o perco.
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