estilhaço
Remexeu com a biqueira do sapato os estilhaços espalhados no
passeio, fragmentos de músculo cardíaco à mistura com sofisticadas peças de
engenharia, sucumbiram ao prelo. a mão tremia-lhe, desfocando a imagem que
faria primeira página na madrugada seguinte. um frio repentino trepou medula
abaixo, colidindo com os suores que lhe impregnavam a camisa. segurou o peito,
na tentativa de acalmar o cavalgar desmedido, olhando em volta, mas não havia
ali ninguém, só os insólitos fragmentos pelo passeio.
sentou-se na calçada sem evitar a nódoa de sangue nas calças
de terylene, procurando nos bolsos fechados do casaco pela calma e um pacote de
açúcar que não tinha usado no café após o almoço. rasgou com os dentes a
extremidade no limiar do desmaio e despejou na boca o conteúdo. ainda demorava
uns minutos, precisava distrair o pensamento, deixá-lo voar para longe dos
nacos anatómicos não identificáveis. fechou os olhos, encaixou o violino
debaixo do queixo, os cristais dissolviam-se adocicando os tons. ao fundo da
rua, alguém jurava ouvir Brahms.
Guardou o arco na algibeira e respirou fundo, começava a
ressumbrar a tarde e ainda não tinha uma fotografia nítida. já gastara todos os
temas, agrafados num molhe, sobravam duas dúzias de palavras pouco usadas na
mala calafetada onde conservava os rolos. o sangue estranho secava no
interstício das fibras, endurecia junto à pele. antes brilhara ao gotejar no
asfalto, agora era uma mancha escura, memória de um amor desfeito.
Abriu o obturador carregado de pólen das orquídeas e
apaixonou-se pelas arestas frescas que corriam. segunda-feira era dia de
empadão, lembrava-lhe o estômago com roncos intercalados de assobios de azia. apressou-se
a guardar as lentes, olhando uma última vez a cena ausente: amanhã já
descongelou, pensou.
Comentários
Enviar um comentário