ressaca II

Jochen levantara-se cedo para ir trabalhar como fazia num dia normal, disfarçando o gozo que lhe dava a minha expressão sujeita às leis de uma ressaca. Da noite anterior só restava a dor de cabeça e uma lição para a vida: Nunca, mas nunca beber com Polacos! Inventam tradições que nos levam a despejar o copo pela garganta abaixo e repetidamente o enchem até derramar, brinde após brinde, num decíduo vértice.

No final do jantar ofereceu a companhia da namorada para me levar a ver Budapeste no dia seguinte, a minha folga. Quando a própria insistiu no passeio, não resisti e interroguei-me se haveria alguém que lhe recusasse fosse o que fosse! Nessa altura ainda estava bastante sóbrio, depois saímos e paramos num bar checo de dois andares, lembro-me do sítio, dos seguranças como colunas gémeas ladeando a entrada, dos bancos corridos de madeira, da música ao vivo a meia-luz, do chão bastante sujo e gasto, do sabor da cerveja num grande jarro e dos vários shots de vodka que me atiraram direito para dentro de uma centrífuga.

Não devia ter dito que sim, uma tour pela cidade naquelas condições tinha tudo para correr mal, seria um longo e doloroso desperdício de tempo. Mas era tarde para voltar atrás, e lá estava ela à minha espera no Scirocco perfumado, acenando como uma estrela de Hollywood.
Arrancou a todo gás, com a terra a girar demasiado depressa, cada depressão na estrada assemelhava-se a um Grand Canyon de mil e muitos metros de profundidade, e à medida que voltava a ser cuspido para o assento, conseguia distinguir as diferentes camadas de sedimentos. Agoniado, concentrava-me na próxima cavidade do piso. Guinou sem aviso parando abruptamente em segunda fila em frente a um pequeno mercado dizendo que já voltava, não fosse o cinto teria lambido o porta-luvas. Aproveitei para baixar o som ao rádio, fechei os olhos e por breves instante olvidei o perfume, riscando por cima até deixar de ser legível, mas assim que voltou e num gesto automático de todos os dias, subiu ainda mais o volume, acompanhando a música com um playback teatral, empunhando o microfone a poucos centímetros da minha cara. Apesar de irritante, não deixava de ser extremamente sensual, mexendo os lábios vermelho vivo sem soltar um ruído."Do I wanna know?"

A segunda paragem foi na outra margem do Danúbio, direcção assistida a músculos, estacionou o desportivo de dezasseis válvulas com destreza num espaço mínimo. Mesmo de estômago vazio, sentia insegurança no vácuo, do rio subia um ar renovado, agradável, e sem querer saber de destino caminhamos por entre prédios de arquitectura harmoniosa. "A unique blend of old and modern..." foi o que ela disse!

“A unique blend of old and modern..." servia para descrever a arquitectura de Budapeste mas também o conteúdo das nossas conversas, bem como a aparência dos interlocutores. De barba por fazer e olhos pesados, assemelhava-me a uma pilha de ruínas romanas decrépitas, na sombra de um belo edifício art nouveau com “curvas violentas e repentinas geradas pelo estalar de um chicote”.

Três mil forints e uns trocos, o equivalente a cerca de onze euros por uma fatia de Csoki Álom, ou sonho de chocolate, e uma água gasificada com dois copos. A aversão pela comida afastava-me o olhar pela decoração rica da sala, suspensos lustres, espelhos embutidos em molduras trabalhadas, mesas espaçadas com turistas que fotografavam os pratos. Mas tinha bom aspecto, Alicja fechava os olhos a cada colher cheia que levava à boca, exuberante nos seus vinte e poucos anos, calções curtos e lingerie berrante. Não fosse a ressaca amarrar-me ao mastro, e esta sereia com lábios de chocolate e corpo de mulher seria irresistível, mesmo sem cantar.

Deixamos a praça József Nádor e acompanhamos o rio de eléctrico, a paisagem como pano de fundo é só um pretexto, trocamos palavras como quem troca presentes entre estranhos numa cidade estranha, muito se vai perdendo na tradução. Como se diz lábios em polaco? Como se diz fode-me em português...
Deixamos o eléctrico e corremos para um autocarro, ligeiramente alheios do resto, a cidade passa por nós e não se incomoda.
Planeou um passeio pela ilha Marguarita, bem no meio do Danúbio, antes do almoço alimentamos os póneis, visitamos as galinhas e os porcos peludos. No saco de lona traz os restos do jantar, kotlet schabowy e mizeria, até o cheiro me dá náuseas, e ela molha o pão nas natas com iogurte onde bóiam pedaços de pepino, em tudo parecido com o que vomitei na noite anterior.

Deito-me na relva, a fraqueza foi tomando conta dos membros, o estômago não pede alimento, as nuvens afastam-se e o sol por momentos ganha protagonismo aquecendo-me. Ouço-a falar, mas cada vez mais longe, mais distante até deixar de a entender e o tempo parar, talvez tenha adormecido, talvez me acorde com um beijo de ninfa e bafo a pepino!

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