fosso



Há um fosso de sentimentos entre nós, abissal quanto possa ser entre duas pessoas que nunca se conheceram, que nunca partilharam o ar arrumado de uma sala, nem repartiram um simples olhar por detrás de uma janela, duas pessoas que nunca estiveram dentro das mesmas fronteiras em simultâneo, nem nunca se falaram em dialectos distintos fazendo uso de gestos. 


Há um fosso de palavras, arquitectado na sua profundidade de silabas soltas, vogais esquecidas de tão usadas que deixam as consoantes amarelecidas. Ontem uma carta atravessou-o, um sobrescrito sem remetente, trazendo mais que palavras, desejei enquanto o rodava nos dedos que fosse um postal de algum sítio distante, com notícias de dias azuis e águas plácidas, corpos dourados deitados sobre sedimentos quartzíticos. 


Há um fosso de desalento cada vez mais fundo, cavado de esmorecimento por um mar encapelado de desânimo. Cada letra que imprimiste apressada no pedaço de papel sem forma de carta, soam estranhas aos meus ouvidos, nem imagino o som da tua voz em cada palavra porque me irritaria de certeza, nem sonho com o teu caminhar descalço junto à espuma das ondas gigantes, se sonho é porque não és tu. 


Havia um fosso de tempo e na vertigem das suas orlas empurrei o passado, ainda fiquei para o ver rolar, sacudido pela gravidade. Quem diria que mo podias reaver com um formato normalizado, trinta e seis cêntimos. Podia ter-se extraviado, arrastado pela corrente, perder-se para sempre no interior da estação dos correios ou pela conduta de esgotos sem nunca chegar às minhas mãos. 


Há um fosso. Não foi escavado por máquinas, nem pela motivação lenta das placas. Não foi minha a criação, apesar de dizeres que o uso para me fortificar, repara que apenas nos separa, a ti e a mim.



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