mira
O tempo era invenção que ali não conhecia espremedura. No pico do sol o
silêncio amarrava as sombras soltas como um pequeno rebanho por baixo do
chaparro, nas ruas nem vivalma para dar a saudação. Tempo simplesmente
não era dinheiro, e era sempre bem-vindo quer fosse bom ou mau tempo,
porque era somente tempo, sem matança, correndo sem presa naquele fim do
mundo, terra onde um dia o diabo perdera as botas, ao que tudo indica
perto de um silvado.
Está Maria como naquele dia, calcando o portado em busca do filho que sumiu do silvado, mas não é a soleira que pisa, e sim uma larga avenida, cabia aqui o Guadiana pensa, ladeada de vidro e betão armado, quando uma multidão avança. Rostos enevoados pela claridade que desce do corredor cruzam-se, mas sem os sentir, passam por ela como espíritos vagos. Anuvia o sol com a palma da mão e avista o filho, homem feito, parado com rosto de máscara. Está a olhar para ela e ela sabe que é ele, apesar de não lhe ver a cor dos olhos, o perfil do queixo tal e qual o pai, o sorriso largo, feliz por a ver. Segura uma garrafa que pende do gargalo um trapo, não chegará a atear o rastilho, dois polícias e depois mais um, vão subjuga-lo ao chão e atá-lo pelas costas. Maria não consegue falar, quer gritar pelo nome mas da boca não lhe vemos um som, quer correr por entre a revolta mas não tem pernas para ultrapassar o portado. Um fio desce pela testa, acorda antes de lhe arrancarem a máscara, sem conseguir ver uma lágrima solta no rosto do filho. Lá fora já precipitou a noite sobre o vale, a luz que desenha sombras pelo quarto rastejou do corredor, na cama em frente uma voz sumida pergunta se está bem, anui com a cabeça, descanse diz-lhe a mesma voz, o seu menino está bem.
Reza a história que ferrava impiedoso o acúleo do sol, e andava o diabo pelos caminhos da terra quando encontrou uma grande figueira, com mais de vinte metros, que rebentava nos ramos altos de frutos pingados de néctar. Faltava o escadote ao diabo onde brincava um gaiato ali junto ao silvado, e sendo o diabo velho chamou o garoto e pediu-lhe escadaria em troca de figos maduros. Reconhecendo o diabo pelas botas, o gaiato aceitou o pacto, emprestando o estreito escadote ao velho que teve de descalçar as botarras por serem demasiado largas. Alcançava a rama alta, o diabo já lambendo o beiço, quando sente a escada perdida dependurando o diabo na figueira, barafustava, estrebuchava enganado por um gaiato de palmo e meio.
Correra estrada fora, esbaforido ouvindo os guinchos do demo, até se perder para lá do limite da vila. Na cabeça um turbilhão de histórias, botas mágicas faziam dançar ditadores, outras davam poderes a gatos astutos. Sem dificuldade saltou para dentro das do diabo, e se pareciam grandes e largas, num ápice ficaram certas, não mudando o tamanho da sola, apenas o tamanho do gaiato. E era um homem, alto como um pinheiro, de braços e pernas largas como um rochedo. Quis então o gaiato ir conhecer o mundo, pois não conhecia mais que o silvado e meia dúzia de sítios no centro. Caminhou ligeiro por um caminho, mas a dúvida assaltou-lhe a mente e sem saber por onde ia, decidiu passar pela vila e perguntar o melhor caminho. Já reinava a confusão nas gentes, perguntou a um moço a razão de tal alvoroço e este contou-lhe então entre dois goles de ar, como o filho do António andava perdido, e a mãe no hospital, não sabiam se o outro já tinha nascido. Os olhos do gaiato que ali estava homem, encheram-se de água, afogando as botas e o diabo, já só pensava na mãe.
Era cega e muito velha, sentada à fresca na pantalha de uma azinheira. Lia o futuro nos covos da mão, olhos nas pontas dos dedos. Chamava-se Mira, mas era conhecida pela velha. Mira estava como sempre, sentada contando o tempo, quando ouviu o choro de um homem. Era um homem alto que chorava como uma cria, e pelo andar, trazia calçado as botas do demo. Porque choras tu gaiato, perguntou a velha cega, para espanto do homem que não era homem mas sim criança. E então contou-lhe a história, como tinha enganado o diabo, e agora era perseguido pelos montes, toda a vila no seu encalce. Quando perguntou o que se passava ao moço, este estranhou as lágrimas do desconhecido e fez correr a sete ventos que tinha encontrado o raptor. Era agora acusado de ter levado o filho do António, mas ele era o filho e só queria voltar para a mãe, escondera-se no acampamento dos ciganos, sem saber que uma velha estava por ali a meditar.
A velha ria a bom rir, desdentada de quase todos os dentes mandava o gaiato descalçar as botas e dentro delas cabiam os seus pés, e ao contrário do que acontecera antes, a velha que era muito velha e cega, via o gaiato à sua frente e voltava a ser criança. De mãos dadas, regressaram à vila, Mira de olhos negros, pequenos berlindes luminosos, contava a toda a gente como tinha encontrado o gaiato e se distraíram a brincar junto à ribeira.
Desde esse dia, Mira nunca mais tirou as botas, nem no dia do seu casamento, e o gaiato... esse foi crescendo até à altura de um pinheiro e passou a ser chamado de cigano.
Está Maria como naquele dia, calcando o portado em busca do filho que sumiu do silvado, mas não é a soleira que pisa, e sim uma larga avenida, cabia aqui o Guadiana pensa, ladeada de vidro e betão armado, quando uma multidão avança. Rostos enevoados pela claridade que desce do corredor cruzam-se, mas sem os sentir, passam por ela como espíritos vagos. Anuvia o sol com a palma da mão e avista o filho, homem feito, parado com rosto de máscara. Está a olhar para ela e ela sabe que é ele, apesar de não lhe ver a cor dos olhos, o perfil do queixo tal e qual o pai, o sorriso largo, feliz por a ver. Segura uma garrafa que pende do gargalo um trapo, não chegará a atear o rastilho, dois polícias e depois mais um, vão subjuga-lo ao chão e atá-lo pelas costas. Maria não consegue falar, quer gritar pelo nome mas da boca não lhe vemos um som, quer correr por entre a revolta mas não tem pernas para ultrapassar o portado. Um fio desce pela testa, acorda antes de lhe arrancarem a máscara, sem conseguir ver uma lágrima solta no rosto do filho. Lá fora já precipitou a noite sobre o vale, a luz que desenha sombras pelo quarto rastejou do corredor, na cama em frente uma voz sumida pergunta se está bem, anui com a cabeça, descanse diz-lhe a mesma voz, o seu menino está bem.
Reza a história que ferrava impiedoso o acúleo do sol, e andava o diabo pelos caminhos da terra quando encontrou uma grande figueira, com mais de vinte metros, que rebentava nos ramos altos de frutos pingados de néctar. Faltava o escadote ao diabo onde brincava um gaiato ali junto ao silvado, e sendo o diabo velho chamou o garoto e pediu-lhe escadaria em troca de figos maduros. Reconhecendo o diabo pelas botas, o gaiato aceitou o pacto, emprestando o estreito escadote ao velho que teve de descalçar as botarras por serem demasiado largas. Alcançava a rama alta, o diabo já lambendo o beiço, quando sente a escada perdida dependurando o diabo na figueira, barafustava, estrebuchava enganado por um gaiato de palmo e meio.
Correra estrada fora, esbaforido ouvindo os guinchos do demo, até se perder para lá do limite da vila. Na cabeça um turbilhão de histórias, botas mágicas faziam dançar ditadores, outras davam poderes a gatos astutos. Sem dificuldade saltou para dentro das do diabo, e se pareciam grandes e largas, num ápice ficaram certas, não mudando o tamanho da sola, apenas o tamanho do gaiato. E era um homem, alto como um pinheiro, de braços e pernas largas como um rochedo. Quis então o gaiato ir conhecer o mundo, pois não conhecia mais que o silvado e meia dúzia de sítios no centro. Caminhou ligeiro por um caminho, mas a dúvida assaltou-lhe a mente e sem saber por onde ia, decidiu passar pela vila e perguntar o melhor caminho. Já reinava a confusão nas gentes, perguntou a um moço a razão de tal alvoroço e este contou-lhe então entre dois goles de ar, como o filho do António andava perdido, e a mãe no hospital, não sabiam se o outro já tinha nascido. Os olhos do gaiato que ali estava homem, encheram-se de água, afogando as botas e o diabo, já só pensava na mãe.
Era cega e muito velha, sentada à fresca na pantalha de uma azinheira. Lia o futuro nos covos da mão, olhos nas pontas dos dedos. Chamava-se Mira, mas era conhecida pela velha. Mira estava como sempre, sentada contando o tempo, quando ouviu o choro de um homem. Era um homem alto que chorava como uma cria, e pelo andar, trazia calçado as botas do demo. Porque choras tu gaiato, perguntou a velha cega, para espanto do homem que não era homem mas sim criança. E então contou-lhe a história, como tinha enganado o diabo, e agora era perseguido pelos montes, toda a vila no seu encalce. Quando perguntou o que se passava ao moço, este estranhou as lágrimas do desconhecido e fez correr a sete ventos que tinha encontrado o raptor. Era agora acusado de ter levado o filho do António, mas ele era o filho e só queria voltar para a mãe, escondera-se no acampamento dos ciganos, sem saber que uma velha estava por ali a meditar.
A velha ria a bom rir, desdentada de quase todos os dentes mandava o gaiato descalçar as botas e dentro delas cabiam os seus pés, e ao contrário do que acontecera antes, a velha que era muito velha e cega, via o gaiato à sua frente e voltava a ser criança. De mãos dadas, regressaram à vila, Mira de olhos negros, pequenos berlindes luminosos, contava a toda a gente como tinha encontrado o gaiato e se distraíram a brincar junto à ribeira.
Desde esse dia, Mira nunca mais tirou as botas, nem no dia do seu casamento, e o gaiato... esse foi crescendo até à altura de um pinheiro e passou a ser chamado de cigano.
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