imortal
Sete letras, dois vertical, que não morre, eterno, inextinguível, perdurável, pessoa cuja memória ficará para sempre…
Com o olhar a divagar no horizonte, a boca articulava cuidadosamente cada vocábulo, ela têm destas coisas, num minuto cospe pelo ar, noutro move os lábios como um ventrículo não conseguiria mover, e fala como se não fossem dela as palavras. No bar ia pedir-te um cigarro, nunca tínhamos falado e no entanto algo me disse que nem valia a pena... já não fumas, tenho a certeza que não és um policia, o teu nome enrola-se na minha boca como bolo… Como posso saber que vais gaguejar, como é que me cheiras a laranjas e que vontade é esta de sentir as tuas mãos pelo meu corpo e ao mesmo tempo te odiar?
Demorei algum tempo a responder, e no entanto não saíram belas palavras, derraparam pela calçada, gaguejadas como ela previra. Comecei pela parede Norte. Esta era a nossa casa antes de eu ir preso, nas paredes havia quadros e fotos das férias, casamos num dia cinzento de Maio. O olhar desviou-se da chuva e numa trajectória sem pensar passou por mim como um pássaro grande que plana, pousando num fenda invisível na parede. Não conseguia decifrar se era um olhar incrédulo ou piedoso, e continuei para Este. As laranjas eu roubava para ti nas traseiras no jardim do vizinho, saltava o muro de bolsos cheios, néctar dos deuses espremido que se colava aos meus dedos… e que tu lambias.
A língua passeou pelo lábio, lenta, diabólica, dolorosamente tortuosa… maltes… sussurrou, como se dissesse para ela mesma, para ver como soava na sua memória. Prendi o maxilar, aguentei o nó que me ia apertando a garganta.
Tu não te lembras porque te apagaram a memória de mim…
Como assim?
Eu sou o que chamam de um resistente… tenho todos os nomes, era isso que eles queriam, e como não falei, acharam que conseguiam extrair da minha memória. Mas não podiam ficar por ai, tinham de limpar a minha existência… quando acordei estava num hospital, não me lembrava de nada, disseram que tinha tido um acidente. Aos poucos a memória foi voltando em sonhos, todas as noites eu sonhava cada dia que tínhamos vivido juntos, eram belos pesadelos, torturado pela tua ausência não tenho tido descanso… lembras-te do choque? Ia-mos na camioneta, ficaste ao meu lado o tempo todo, pulmão colapsado, no dia seguinte foste visitar-me ao hospital, trazias um vestido azul…
Como é que a memória voltou em sonhos? Não entendo, parece que nem falamos a mesma língua…
Repara na parede Sul, consegues ver o emaranhado estrangulador das raízes?
Levantou-se em direcção à parede, com receio tocou ao de leve na aspereza do troço forte, a pele do braço arrepiou, era como se tocasse em mim.
Continua.
Foi um velho muito velho que me ensinou a construir sonhos, a entrar e sair deles deixando todas as recordações salvaguardadas, por isso mesmo sem memória, quando Morfeu chegava pela noite, eu voltava aos teus cabelos, aos teus braços… ao centro do teu corpo. Levei algum tempo a entender que o que sonhava eram de facto momentos que tinha vivido… nem imaginas quantas vezes te procurei e te encontrei… e nunca sequer olhaste para mim.
E ela contemplou placidamente, caminhando da parede Sul à Norte cautelosa, segurando a bússola dentro do peito na minha direcção. Debruçou-se para me cheirar, confiando no nariz mais do que em qualquer outro sentido. Fechei os olhos baixando a guarda da alma, sentia o calor da aproximação do seu corpo, as pontas do cabelo roçando, o ar quente que expirava junto à minha cara e o bater do coração, agitado pelo perigo.
Quando a chuva parar…disse, mas ela não me deixou continuar, juntando os meus lábios no seu dedo indicador, abri de novo os olhos, a cara dela tão junta, os lábios tocaram-se primeiro só comprimidos, tímidos, lábio superior com inferior abraçados, uma dança húmida que terminava com o enrolar de línguas ávidas, ferozes caçadores de bocas, animais insaciáveis. Passeiam trémulas inseguras, recuperando a sensibilidade, as minhas mãos pelas costas nuas dela, dedilhando pelas concavidades.E ela continuou com a profecia... quando a chuva parar vais estar dentro de mim, vivo, pulsante como um enorme peixe que se agita fora de água.
Com o olhar a divagar no horizonte, a boca articulava cuidadosamente cada vocábulo, ela têm destas coisas, num minuto cospe pelo ar, noutro move os lábios como um ventrículo não conseguiria mover, e fala como se não fossem dela as palavras. No bar ia pedir-te um cigarro, nunca tínhamos falado e no entanto algo me disse que nem valia a pena... já não fumas, tenho a certeza que não és um policia, o teu nome enrola-se na minha boca como bolo… Como posso saber que vais gaguejar, como é que me cheiras a laranjas e que vontade é esta de sentir as tuas mãos pelo meu corpo e ao mesmo tempo te odiar?
Demorei algum tempo a responder, e no entanto não saíram belas palavras, derraparam pela calçada, gaguejadas como ela previra. Comecei pela parede Norte. Esta era a nossa casa antes de eu ir preso, nas paredes havia quadros e fotos das férias, casamos num dia cinzento de Maio. O olhar desviou-se da chuva e numa trajectória sem pensar passou por mim como um pássaro grande que plana, pousando num fenda invisível na parede. Não conseguia decifrar se era um olhar incrédulo ou piedoso, e continuei para Este. As laranjas eu roubava para ti nas traseiras no jardim do vizinho, saltava o muro de bolsos cheios, néctar dos deuses espremido que se colava aos meus dedos… e que tu lambias.
A língua passeou pelo lábio, lenta, diabólica, dolorosamente tortuosa… maltes… sussurrou, como se dissesse para ela mesma, para ver como soava na sua memória. Prendi o maxilar, aguentei o nó que me ia apertando a garganta.
Tu não te lembras porque te apagaram a memória de mim…
Como assim?
Eu sou o que chamam de um resistente… tenho todos os nomes, era isso que eles queriam, e como não falei, acharam que conseguiam extrair da minha memória. Mas não podiam ficar por ai, tinham de limpar a minha existência… quando acordei estava num hospital, não me lembrava de nada, disseram que tinha tido um acidente. Aos poucos a memória foi voltando em sonhos, todas as noites eu sonhava cada dia que tínhamos vivido juntos, eram belos pesadelos, torturado pela tua ausência não tenho tido descanso… lembras-te do choque? Ia-mos na camioneta, ficaste ao meu lado o tempo todo, pulmão colapsado, no dia seguinte foste visitar-me ao hospital, trazias um vestido azul…
Como é que a memória voltou em sonhos? Não entendo, parece que nem falamos a mesma língua…
Repara na parede Sul, consegues ver o emaranhado estrangulador das raízes?
Levantou-se em direcção à parede, com receio tocou ao de leve na aspereza do troço forte, a pele do braço arrepiou, era como se tocasse em mim.
Continua.
Foi um velho muito velho que me ensinou a construir sonhos, a entrar e sair deles deixando todas as recordações salvaguardadas, por isso mesmo sem memória, quando Morfeu chegava pela noite, eu voltava aos teus cabelos, aos teus braços… ao centro do teu corpo. Levei algum tempo a entender que o que sonhava eram de facto momentos que tinha vivido… nem imaginas quantas vezes te procurei e te encontrei… e nunca sequer olhaste para mim.
E ela contemplou placidamente, caminhando da parede Sul à Norte cautelosa, segurando a bússola dentro do peito na minha direcção. Debruçou-se para me cheirar, confiando no nariz mais do que em qualquer outro sentido. Fechei os olhos baixando a guarda da alma, sentia o calor da aproximação do seu corpo, as pontas do cabelo roçando, o ar quente que expirava junto à minha cara e o bater do coração, agitado pelo perigo.
Quando a chuva parar…disse, mas ela não me deixou continuar, juntando os meus lábios no seu dedo indicador, abri de novo os olhos, a cara dela tão junta, os lábios tocaram-se primeiro só comprimidos, tímidos, lábio superior com inferior abraçados, uma dança húmida que terminava com o enrolar de línguas ávidas, ferozes caçadores de bocas, animais insaciáveis. Passeiam trémulas inseguras, recuperando a sensibilidade, as minhas mãos pelas costas nuas dela, dedilhando pelas concavidades.E ela continuou com a profecia... quando a chuva parar vais estar dentro de mim, vivo, pulsante como um enorme peixe que se agita fora de água.
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