fragmentos

O homem sentou-se junto à rapariga que não parecia. Foi a voz ou algum tique, como aquele de atirar com a marrafa que provocaram estranheza. Estava sentada ao lado, ambos voltados na direção que o transporte levava, por isso nunca a viu. Toda a imagem que aos poucos foi construindo, foi fornecida pela cérebro. Um pouco de visão periférica, reflexos nas janelas, ou até nas lentes dos óculos dos outros passageiros. Os cérebros desafiam as hipóteses quando se trata de completar e inventar rostos. O deste homem passa a maior parte do tempo a fazê-lo. É como um jogo. Por isso raramente chega a olhar alguém nos olhos, mas quando acontece olhar, tem grandes desilusões. Pois que este cérebro gosto de abusar na harmonia e na simpatia também. Dá-lhes sorrisos ternos, covas artificiais e sinais sensuais. Mas não era sobre isso que o homem escrevia. Ou queria escrever. O naco cinza que habitava o seu crânio já começara a juntar algumas ideias no percurso até ao transporte, mas eram só fragmentos, leves e frágeis como palha. Sentara-se com alguma urgência, mais preocupado em não perder o fio, sem prestar atenção ao que o rodeava. Abria vários bolsos da mochila em busca por um pedaço de papel inócuo, quando a rapariga começou a falar com a outra que estava sentada mesmo em frente. Escolhera mal o lugar, pensou, a jovem para além de a conseguirem ouvir na carruagem seguinte, gesticulava abundantemente. Olhou em volta, mas já não havia lugares vagos. Procurou os auscultadores, esquecendo o papel e rapidamente aceitou uma playlist barulhenta que a aplicação lhe sugeria, mesmo a tempo de não escutar toda a explicação sobre o plot de uma série que a jovem gostava muito e explicava entusiasticamente o porquê do seu agrado. O homem não se lembrava da última série que tinha visto, mas não era esse o pensamento que ocupava o seu cérebro. Esse naco de gordura continuava a lutar com o tema da simpatia e enquanto o papel não aparecia, mecanicamente elaborava uma lista das pessoas mais simpáticas que conhecia. O homem desistiu do papel, só tinha consigo faturas e receitas, justificações, coisas importantes. Abriu o bloco de notas no telemóvel. "Qual será a cotação da simpatia nestes dias?" escreveu. A rapariga que não parecia estava em silêncio, absorta na série. De vez em quando atirava a marrafa da frente dos olhos, mas o seu cérebro já a fazia feia, com mil borbulhas a despontar numa testa pequena e olhinhos miúdos de musaranho.

Comentários

  1. Já há um livro denominado "índice médio de felicidade" (que ainda não li), talvez possa escrever um sobre o índice médio de simpatia. A verdade é que o excesso enjoa e a falta angustia.

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    1. nã é preciso um livro quando numa simples frase consegue conter toda a essência :D

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  2. Penso que esse homem, mesmo sem olhar as pessoas de frente, tinha uma maior predisposição para lhes ver defeitos do que perfeição.
    Que pessoa estranha!
    Sabes, Manel? No Alentejo chamamos 'marrafa' à risca no cabelo, sobretudo dos homens. Ao que chamaste marrafa é franja ou ripas, na frente do cabelo em cabeças de pessoas do género feminino. 😊
    Não admira que tudo na vida dessa criatura seja feita de fragmentos, quem não olha no fundo dos olhos não conhece nem sabe o que vai na alma de ninguém.
    Grande abraço, Manel.

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    1. eheheheheh, bem visto :D mas a "marrafa" foi aplicada com intenção, porque o género embora feminino, nã o parecia
      coisas de pessoa estranha mesmo :D
      abraço

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