emersão
Havia um cristo pendurado que observava em sofrimento, os
castigos físicos que a senhora professora nos infligia. Lembro-me dele, terei
suplicado por um milagre no momento em que a palmatória esvoaçava no ar em
direcção à minha mão, a minha avó fazia-o muitas vezes. Mas ele não me atendeu.
Por isso comecei a pensar que deus não existia, só quando algo de mau acontecia,
achava que estava a ser castigado devido à minha insolência. Outras questões foram
surgindo sem resposta à vista, se cristo era filho de deus, e deus
criara o homem e todo o universo, porquê que não tinha deus intercedido,
lançando um raio fulminante sobre pilatos? Como é que um pai permitia que o seu
filho fosse pregado e morresse em sofrimento? Mas afinal, se deus era o
criador, ele era pai de tudo, e sendo pai de tudo, como podia permitir que
crianças morressem à fome? Estaria deus
tão ocupado a castigar-me, que não lhe sobrava tempo para fazer chover em África?
Onde é que deus estava quando Hiroxima e Nagasáqui foram bombardeadas? E os
dinossauros? Que mal teriam feito os dinossauros para serem exterminados da
face da terra? E se eles foram, nós também podíamos ser, foi então que decidi retirar
deus da equação e tudo fazia mais sentido. Tornei-me no que se denomina um ateísta,
e permaneci ateísta durante algum tempo.
No auge da minha adolescência, Kurt Cobain matou-se com um
tiro de caçadeira no dia 5 de abril de 1994. No dia seguinte, Juvénal
Habyarimana e Cyprien Ntaryamira foram assassinados. Um era o presidente do
Ruanda, o outro do Burundi, mas isso fica algures nos confins de África e deus
não quer saber. Dá-se início ao genocídio no Ruanda, em 100 dias calcula-se que
morreram 800 mil pessoas. O mundo e deus assistiram em silêncio. No final de
agosto de 1994 estima-se que cerca de dois milhões de pessoas refugiaram-se nos
países vizinhos, como a Tanzânia, Burundi, Uganda e Zaire (actual República
Democrática do Congo). Vinte anos depois, alguns ruandeses continuam sem
regressar.
Nesse mesmo ano ainda decorria uma outra limpeza étnica que
começara quando um clima de paz finalmente pairava sobre a Europa. O cerco a
Sarajevo foi o mais longo da história moderna. Entre 1992 e 1996, morreram
cerca de 100 mil pessoas. Atiradores furtivos alvejavam crianças, animais
domésticos, homens e mulheres que passavam nas ruas para procurar comida e água.
Jornalistas instalavam-se em zonas estratégicas e fotografavam ou filmavam a
população a ser alvejada. Em Srebrenica, oito mil muçulmanos bósnios, entre os
10 e os 77 anos, foram executados, alguns foram empurrados vivos por retro-escavadoras
para uma vala comum. A comunidade internacional assistia impávida e serena no
conforto das suas casas, e deus ou alá, de férias numa estância balnear em Èze.
Também gostava de um dia ir até Èze, aquilo parece bonito. E quem sabe até encontrava deus esparramado numa espreguiçadeira a fumar charros. Eu sou mais de amêndoas e não tenho nada contra os feriados, nem que os coelhos ponham ovos, mas por estas e por outras, não comemoro a ressurreição de
ninguém, apenas vou relembrando os que já partiram.
Quando a minha sobrinha
nasceu em 2010, tornei-me agnóstico.
emersão: trata-se de «acto de emergir, de vir ou trazer à tona» e, em astronomia, «fenómeno da reaparição de um astro depois de ter sido eclipsado pela sombra ou interposição de um outro» (in Dicionário Eletrônico Houaiss).
Manelito, deixas-me fazer uso das tuas palavras, para dar voz viva às minhas?
ResponderEliminarSó nos resta chorar e lamentar as vidas perdidas, assim como cuidar das vidas dos que cá estão e que nos fazem sorrir:)
Deixo um beijo Manelito, e eu também com o tempo me tornei agnóstica.
o tempo e aqueles que partem, fazem coisas destas... beijo Sandra
EliminarOlha afilhado, pelas mesmas razões que apontas e outras tantas que mesmo não tendo conhecimento, sabemos existir, tornei-me... ai... como dizer isto... "ATUA"
ResponderEliminarPois, dava uma trabalheira explicar, então decidi ficar-me pelo agnóstica teísta uns dias, e noutros, mais amargos, agnóstica ateísta..
Como diz a Sandra, choremos as vidas ceifadas de morte matada, e cuidemos dos que cá estão e nos fazem sorrir.
Abreijo afilhado mailindo quinté