impróprio
A verdadeira natureza era reprimida
por várias camadas de um couro que crescera sobre o impróprio, envolvendo religiosamente
o profano de maneirismos sociais, até se tornar vulgar e aceitável. Dissimulado,
abrigava-se na alta monotonia matizada que ondulava ao sabor da brisa,
ostentando sinais de adaptação, uma tez limpa de tatuagens ou estranhas
perfurações. A barba perfeitamente desfeita, combinava com o corte barato e
rente, muito próximo do zero. Dificilmente o teria reconhecido se ele
aparecesse à porta tal como se tinha criado, despido de preconceitos.
Bocejou aborrecida pela sala
enquanto ele abria uma garrafa de tinto na cozinha. Nada parecia ser deixado ao
acaso, uma estante fria ocupava a parede mais longa, cruzada de livros e pastas
de arquivo. Dois candeeiros de pé iluminavam o suficiente em cada extremo e o
tapete de lã preta tinha as dimensões certas. Na mesa pequena diante do sofá sem braços, um álbum aberto com pequenos pedaços de papel colorido e
carimbos, alinhados por valor sob uma banda de seda. Não havia quadros ou
retratos, nem almofadas em excesso, apenas um par de colunas antigas ligadas a
um rádio. A colecção de fósseis numa das prateleiras mais baixa da estante, parecia
ainda mais morta e enfadonha que os selos.
Passou o dedo ao de leve pela espiral rugosa da amonite, procurando o pulsar de vida na superfície mineralizada e escura, mas o que sentiu foi um formigueiro subindo desde o ventre, voltando-se na direcção do olhar que se alimentava nas curvas justas do vestido. Ela sorriu assustada e elogiou a
decoração que só não era mais gelada porque ele ligara o aquecimento. Estendeu-lhe um copo largo e serviu-a com destreza até meio. Normalmente
não saia com colegas, achava-os insípidos, uns sensaborões de sapatos que chiavam e
meias rotas nos calcanhares. Aquele à primeira vista parecia diferente, cheirava a limpo, mas podia ser monótono e sem tesão, despindo mais com os olhos do que com as mãos. Saboreou o vinho, deixando-o correr lento pela garganta ressequida,
lá fora o vento fustigava as árvores da avenida em silêncio.
A idade é tramada. Tornamo-nos fossilados, intragáveis, extintos. Deixamos de despertar qualquer tipo de interesse, nem os museus nos querem. Com sorte, mas só com muita sorte, se não tivermos uma morte em paz e descanso, lá acabaremos na mesa de dissecação da medicina legal. Isso sim, será o nosso derradeiro acto de objecto de interesse e visibilidade.
ResponderEliminarEsta conversa está mesmo tétrica...dá-me mas é mais um copo...mas desta vez cheio, se fazes o favor, que estou mesmo a precisar de me alienar nos abençoados vapores etílicos. Eheheh...
já pedi para ser cromado... tens preferência pelo cheio?
EliminarFossilizados e não fossilados, claro. As minhas desculpas...(sorriso muito envergonhado).
ResponderEliminarCromada ou cremada é que não. Apesar de que nem tudo o que reluz é ouro, eu já deixei estipulado que quero ser dourada, e, obviamente, que não me refiro ao peixe, pois prefiro "La Sole Meunière".
ResponderEliminarQuanto ao copo, cheio, sempre! Não sou mulher de meias medidas.
só tenho um pinot noir... pode ser?
EliminarDesculpa, mas não.
ResponderEliminarSó consumo a Touriga Nacional, porque o que é nacional é que é bom, ou então, a Tinta Cão, pois adoro bichos de quatro patas.
pois, mas nacional já acabou...
EliminarPaciência...e assim sendo, pai, salvo seja, que não tens idade para ser meu pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue...de pinot noir.
EliminarTalvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Que bem que sempre canta o C. B.!
E agora vou-me embriagar até morrer do meu próprio veneno...que é nacional, pois portuguesa nasci e assim irei continuar.